quinta-feira, junho 29, 2006

Matta Clark

Passo e fico, como o Universo.

Alberto Caeiro

O que fica dos passos, como o Universo, é a poeira sem contornos, nem cor, nem substância. São vidas forçadas a viagens entre Escolas e diferentes Cidades ou Aldeias, uma espécie de exílios somando os anos aos anos, entre vigílias nómadas e tímidas. Os professores portugueses têm, na base da sua utilização pedagógica, esta erância que os divide, os separa, os torna intérpretes da tão anunciada precariedade do trabalho outrora consistente e sujeito a normas de progressão num quadro de carreira, numa perspectiva consolidada de futuro. Esse estatuto, cuja base de sustentação, além das licenciaturas dos doutoramentos, das agregações das ciências da educação, era conquistado devagar e o mais seguramente possível. As famílias constituíam, para muitos docentes, lugares sólios de ancoragem ou o porto provisório de uma vontade colectiva de ensinar mais perto das origens. Uma coisa para uma ou duas décadas, permitindo, em todo o caso, que os protagonistas do ensino se ligassem à terra, à sua história, a par das pessoas e dos seus costumes nos diversos enquadramentos distritais. Lisboa atraía os que mais ambicionavam, entre várias coisas da sedução urbana, entre a frivolidade e a cultura, a vida cosmopolita (ou a sua simulação) - porque, à medida que a colonização se alargava em vários sentidos, os prédios urbanos tentavam sugerir certa qualidade de vida, tinha lareira não se sabe porquê, várias casas de banho, fogões eléctricos, porta-lixos, e porteiros ou porteiras e guardas nocturnos abafados por aqui e por al, portadores de chaves de portas, garagens e carros.

Não quero, com estas imagens, fazer a apologia da apatia cinzenta dos tempos de Salazar, mas apontar desde já os indícios do que deveria hoje ter evoluído para grandes patamares de consistência nos encontros e nos projectos de cada profissão. O rumo inquietante das máquinas que se aproximavam, ao ritmo das migrações, era já o aviltamento da terra, o princípio dos chamamentos chantagistas, cortando sem valor de ciência os campos de uma agricultura onde havia ainda uma sedentarização produtiva da ordem dos 30% da população nacional.

NOMADISMO E AVALIAÇÃO DOS PROFESSORES

Matta Clark

Passo e fico, como o Universo.

Alberto Caeiro

O que fica dos passos, como o Universo, é a poeira sem contornos, nem cor, nem substância. São vidas forçadas a viagens entre Escolas e diferentes Cidades ou Aldeias, uma espécie de exílios somando os anos aos anos, entre vigílias nómadas e tímidas. Os professores portugueses têm, na base da sua utilização pedagógica, esta errância que os divide, os separa, os torna intérpretes da tão anunciada precariedade do trabalho outrora consistente e sujeito a normas de progressão num quadro de carreira, numa perspectiva consolidada de futuro. Esse estatuto, cuja base de sustentação, além das licenciaturas, dos doutoramentos, das agregações, das ciências da educação, era conquistado devagar e o mais seguramente possível. As famílias constituíam, para muitos docentes, lugares sólidos de ancoragem ou o porto provisório de uma vontade colectiva de ensinar mais perto das origens. Uma coisa para uma ou duas décadas, permitindo, em todo o caso, que os protagonistas do ensino se ligassem à terra, à sua história, a par das pessoas e dos seus costumes nos diversos enquadramentos distritais. Lisboa atraía os que mais ambicionavam, entre várias coisas da sedução urbana, entre a frivolidade e a cultura, a vida cosmopolita (ou a sua simulação) - porque, à medida que a colonização se alargava em vários sentidos, os prédios urbanos tentavam sugerir certa qualidade de vida, tinham lareira não se sabe porquê, várias casas de banho, fogões eléctricos, porta-lixos, e porteiros ou porteiras e guardas nocturnos abafados por aqui e por ali, portadores de chaves de portas, garagens e carros. O rumor inquietante das máquinas que se aproximavam. ao ritmo das migrações, era já o aviltamento da terra, o princípio dos chamamentos chantagistas, cortando sem valor de ciência os campos de uma agricultura onde havia ainda uma sedentarização produtiva da ordem dos 30% da população nacional.

Não quero, com estas imagens, fazer a apologia da apatia cinzenta dos tempos de Salazar, mas apontar desde já os indícios do que deveria hoje ter evoluído para grandes patamares de consistência nos encontros e nos projectos da uma sedentarização com boa ordenação do território, na racionalidade da distribuição dos meios e unidades produtivas.

Em todo o caso, a promoção de um professor à condição mais alta era penosa, obrigava ao rigor do estudo pedagógico sem projecção prática e ao aprofundamento das metodologias, das técnicas inseridas nos programas, a par de um significativo quadro de orientações profissionalizantes. Havia provas decisivas, como a do Exame de Estado, lição que parecia anteceder o doutoramento e ter solenidades idênticas. Um Curso de Pedagógicas, inspecções, candidaturas e vagas que começavam a tornar-se exíguas - a marca do tempo avançando com as máquinas, carros de combate , como num cerco à cidade, peças indizíveis prontas para ajudar a erguer prédios de quatro andares, cimento, tijolo, casinhas minúsculas, cozinhas apertadas, estendais para secar a roupa, nos subúrbios, à portuguesa, todo o terreno em volta configurado por mato, algumas árvores secas, barracas de madeira e zinco envolvendo o círculo anterior do perímetro citadino, num sonho logo sujo de lixo e fezes, como os arredores de muitas cidades ou povoações médias do terceiro mundo.

Depois do 25 de Abril de 74, entre convulsões, equívocos, segredos e fracturas, quase uma guerra civil nas barbas da outra, a colonial, cento e cinquenta mil homens em três frentes de combate, um sinal de verdadeiro confronto veio dar força política a quadros mais moderados, foi possível instituir a Constituinte, gerindo o país, nessa ravina do sonho, através de governos provisórios de quase sempre triste memória. E é desta dinâmica desencontrada, servida por máquinas administrativas que sempre haviam dado suporte à ditadura, numa rede de postos, guarnições mlitares, polícia política, ministérios pomposos e autoritários, que irá nascer a democracia, rangendo os dentes, sofrendo ainda os calafrios produzidos pelas forças em presença. A Escola, realidade que fora tratada, por razões sociais e não técnicas, segundo estratos de aplicação diversa consoante os planos profissionais, chegara a obter valores de aproveitamento e de qualificação acima da média no período que sucedeu à fase inicial da instauração republicana. Das extintas Escolas Técnicas e Comerciais saíram gerações de profissionais a quem o regime validara acesso às áreas próprias, quer na linha das indústrias embrionárias, quer nos equipamentos comerciais ou outros, sobretudo no sector bancário. Por volta da década de 60, muitos directores dessas Escolas eram escolhidos entre os artistas diplomados pelas Belas-Artes, tendo em conta o seu valor criativo e intelectual, a par de uma assinalável abertura aos problemas nucleares das demais disciplinas. Há todo um estudo a fazer sobre esta via de ensino, reformas, apetrechamentos e reapetrechamentos, a descoberta de campos de pesquisa com incidente aplicação social.

Ao lado de tais instituições, mas entretanto monolíticos, formais, destituídos de liberdade criadora e geridos (frequentemente) por homens de letras, reitores hirtos, capazes de quadricular toda a realidade pedagógica e de convívio sob sua regência, havia então os famosos liceus - máquinas densas e inúteis, preparando os alunos para acederem aos caminhos da Universidade e, mais tarde, constituirem eventualmente a maior parte das nossas elites.

Quando estalou a revolução dos capitães acabara praticamente de se desenhar no papel uma reforma geral do Sistema Educativo, da responsabilidade do Prof. Veiga Simão, pela qual se criavam mais universidades, se concentrava a formação secundária num só eixo unificador (o dos liceus) e se começava a esbater, por completo desonhecimento da sua identidade e prioridade cultural, as disciplinas de índole artística, tanto no ramo unificado que fingia igualizar toda a gente, como a nível superior, onde foi necessário gastar cerca de vinte anos para integrar as Escolas Superiores de Belas-Artes, na condição de Faculdades, em Universidades de Lisboa e Porto. Tudo isso estava largamente adiantado em Espanha, com as suas Faculdades de Belas-Artes e o entendimento delas num quadro plural de prestações em ordem às próprias Universidades ou à comunidade.

Portugal cava as suas feridas: e se outrora podia resignar-se a umas centenas de alunos habilitados que entravam para o Ensino Superior Universitário, ao desatar os diques, sem a rolha das diferenças sociais, justamente quando o ensino se tornava gratuito por ordem da Constitição, viu-se a braços com dezenas de milhares de candidatos, além da vaga de cerca de quatrocentos mil inscritos nos planos dos ensninos básico e secundário. Todos os equilíbrios se estilhaçaram, apesar de muitos méritos que foram deslizando na corrente agitada durante anos e contra a pouca vontade política dos governos já constitucionais.

Em síntese: os problemas logísticos aumentavam de dia para dia; o pessoal auxiliar, desclassificado, perdia-se em exigências de deslocação e de função; os equipamentos de natureza didáctica, escassos, mal se completavam com meia dúzia de projectores de diapositivos por aqui e por ali; as instalações novas envelheciam à nascença, sem ginásios, sem anfiteatros, sem laboratórios; e os professores, recrutados como numa urgência de guerra, com ou sem habilitações, eram lançados por todo o espaço nacional, ano a ano, sem casa, sem referências, ganhando e perdendo os afectos da profissão, impedidos de dilatar (em comunidade) a sua formação e os cuidados sobre a realidade pedagógica da qual se apagava, de forma displicente, toda a poética. Ora um professor é uma chave essencial para a manutenção dos princípios da vontade criadora, da prospecção e investigação, da disciplina e sentido cívico, pessoas de memória para a memória, para serem recordadas e não perdidas após uns meses de conhecimento e partilha de experiências. Há contudo quem os considere caixeiros viajantes, revividos a partir da obra de Arthur Miller, ou os personagens à espera de nada, como no Godot, de Beckett.

Em suma:

É urgente encarar a formação dos professores, mas não como os que desabrocham naquelas escolinhas que os salpicam de condimentos q.b. e os mandam, sem mais, para a condição de docentes efectivos aqui e além. Os verdadeiros agentes do ensino precisam de que lhes facilitem os meios de trabalho através, por exemplo, da Universidade Aberta ou da Internet, incluindo bibliografia adequada às respectivas problemáticas. Não lhes peçam mais precariedade, mais nomadismo, mais exames, mais avaliações pretensamente de vanguarda. A melhor forma que já se esboçou no nosso país a este respeito, e que precisava de configurações actualizadoras quando a deitaram para o lixo, correspondeu à profissionalização em exercício. Num certo número de escolas espalhadas pelo país e bem apetrechadas quanto aos meios tecnológicos e outros, incluindo especialistas em comissão de serviço para assessorar outros docentes «rotativos», o professor começava por reaprender o que aprendera e sobretudo aprendia fazendo aprender. Além da sua própria iniciativa, documentada no fim de dois anos, algumas linhas normativas e identificadoras seriam avançadas consoante as regiões e trabalhadas com orientações e avaliações informais por orientadores e tutores, os quais circulariam por determinadas instituições e teriam a seu cargo a observação e o aconselhamento de certo número de alunos em profissionalização. Este trabalho, sem pompa nem apertos de classsificação, haveria, em todo o caso, de obter certificados finais discutidos pelo docente, pelos orientadores e tutores. Toda a mecânica destas tarefas seria naturalmente controlada por lei e calendarizada por forma a que os orientadores e tutores pudessem trabalhar a sós ou em conjunto com o candidato à profissionalização. Da área das ciências humanas, onde poderia haver simpósios duas vezes por ano, seriam recrutados coordenadores de actividade geral na respectiva zona, prontos a respirar segundo os objectivos da educação e as mudanças estratégicas da ciscunstancialiade nacional, entre outros aspectos a ponderar.

Os professores teriam o direito de escolher uma fixação, um vínculo de tempo indeterminado na Escola, aí ensinariam sem o sobressalto do nomadismo, a par daqueles que seguiriam itinerários trienais até uma certa idade. Aos que desajassem fixar-se no interior, as autarquias providenciariam planos de alojamento e o Estado completaria tais miragens com subsídio de isolamento, habitação e formação.

Quando isto acontecer (a par de normas estruturais de natureza corrente e realidades que têm de ser ponderadas), a qualidade do ensino terá de melhorar e os factos assim gerados poderão cativar os alunos relativamente à sua segunda casa - a Escola.

Do Ensino Superior Universitário é preciso falar com mais tempo e outra disponibilidade dos meus leitores. Mas os acessos terão de mudar por completo, determinados por cada Escola com auxílios a convocar, e a carreira docente, como decorre agora, deverá ser implodida muito a sério, pois as cerimónias de mestrados, pós-graduações, cursos para doutoramento, doutoramento, agregações, tudo isso só deixa na vida dos professores e alunos uma forma babélica de esforço obstruído, sem verdadeiro entrosamento, sem investigação, sem tempo de sobejo de tanto ritual para a verdadeira dedicação ao trabalho com os alunos. E a verdade é que estes podiam fazer parte de períodos de aprofundamento temático, com o professor doutorando, partilhando de uma verdadeira dedicação aos valores do saber. Há outros modos de percorrer a carreira, daquele ponto à abertrura das instituições. O resto, o que tem persistido, vem dos poderes arcaicos, pelo menos entre o feudalismo e Napoleão.

terça-feira, junho 27, 2006

no jardim, uma pequena pausa com Alberto Caeiro


A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra.
E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

foto R.Sousa
Palácio da Cidade

segunda-feira, junho 26, 2006

AS BARATAS IMORTAIS


O velho queria saber se eu tinha sido sujeito a regimes de tortura. Queria saber, em particular, se contraira problemas de percepção, nomedamente a visual. «Que problemas, senhor doutor?» Ele estava sem paciência: «Ó homem, os habituais, distorção das formas, aranhas pequenas subindo lentamente pelas paredes, ruídos estranhos» Cuspi para o chão. «Aranhas nunca, nunca vi aranhas, nem a subir pelas paredes nem a correr pelo chão» O médico rabiscou no seu caderno de notas e na minha imensa ficha, um monte de cartões presos por duas argolas. O homem levantou o rosto e olhou-me com desconfiança, perguntando: «Mais nada». Encolhi os ombros:«Não, mais nada» Deixei a cabeça pender e vi os meus pobres sapatos, sujos, rotos, cambados. «Estou agora a pensar nas baratas, todo aquele pavilhão é imundo». Ele, ansioso: «Baratas? Que baratas? Onde estavam as baratas?» Coçei a cara, já chateado: «A baratas? Naturalmente que no chão» O velho de novo: «Tem a certeza?». Olhei outra vez para os sapatos, sentia os pés frios. «Eu pisava as baratas, esmagando-as com preciosismo, mas elas saíam vivas debaixo das solas. Porque é que as baratas se safam desta maneira?»
O médico, com os seus cabelos brancos escorridos, disse secamente e devagar:
«As baratas são imortais».

domingo, junho 25, 2006

TEMORES E VIGILÂNCIA


Erradamente, meteram-me na António Maria Cardoso e desataram a fazer-me perguntas idiotas sobre um tal Jerónimo. Era no tempo em que o governo zelava pelo emprego dos desprotegidos da inteligência, dos coxos, dos arrastadinhos, dos trapalhões - toda essa gente com vocação para contínuos, serventes, vigilantes. Também estive de pé dias seguidos, queriam saber vários nomes de gajos que eu nãp conhecia, porra de noites, porra de dias, ficava cego, acordavam-me batendo com um martelo no tampo da mesa. Deixei de perceber as coisas, a luz em volta. Então despejavam um balde de água fria sobre a minha cabeça ardente e eu só retomava o mundo das aparências pouco depois, rodeado de baratas que andavam pelo chão, montes de baratas sempre vivas mesmo depois de as pisar lentamente, com preciosismo.
Dali fui direitinho para o Júlio de Matos, instituição que conhecia bem. Fui encontrar por lá um arquitecto que já fora professor na Escola, dedicava-se agora à pintura. Pintava umas paisagens com galinhas, terrenos floridos, espaços verdes onde pousavam bonitas vivendas em «estilo português suave». Dois enfermeiros vieram buscar-me e eu fui assim, arrastado, até ao consultório de um médico velho, com os cabelos desalinhados mas pendidos. Perguntou-me se havia sofrido inquéritos dolorosos, o método da estátua, choques eléctricos. E ainda me perguntou se estava a ver bem, se não me debatia com o desfoque das figuras ou se tinha a percepção de pequenas aranhas trepando pelas paredes. «Aranhas não, aranhas nunca». O velho olhou-me com desconfiança e eu voltei a falar, ansioso: «Só vi baratas. Imensas baratas». E ele, de olhos muito abertos: «Onde?» Encolhi os ombros: «Naturalmente que no chão». O velho médico escreveu duas ou três palavras na ficha e disse depois: «Mais nada?» Olhei para os meus pés, os sapatos sujos e rotos. «Mais nada. Eu pisava as baratas, esmagando-as com preciosismo, mas elas saíam vivas debaixo das solas». Então o homem disse secamente, mas devagar:
«As baratas são imortais».
ilustração de Rocha de Sousa, trabalhada por computador.

TEMORES E VIGILÂNCIA


No dia das folhas de pagamento fico sentado, à espera, ou dou a volta ao edifício por dentro, no labirinto dos corredores. Na casinha das chaves, utilizando uma pequena mesa de pé de galo, assento aí a folha que me corresponde e levo todo o tempo possível a fazer contas, aumentos, descontos, cobrança da segurança social, e assim. Todos me perguntam a razão de ser deste hábito ou desta exigência. E se eu encontrar um erro? Já fui roubado muitas vezes, e outras coisas e por outras razões, até um gato me levaram - e é por tais casos que alguns de nós ganham este género de manias. Ou melhor: um permanente fio de temor e vigilância. Nunca atravesso uma rua sem olhar primeiro para a direita e depois para a esquerda. É uma questão de verdade. Com as contas é também uma questão de direito.
No caso da Ermelinda, os que me pagam e a polícia dos que me pagam fizeram aqui, por outro lado, centenas de perguntas. Toda a gente dizia que a Ermelinda era muito boa pessoa, que se relacionava admiravelmente com os alunos e os colegas, que tinha amigas no bairro onde vivia, era viúva, religiosa, tranquila, resignada segundo a sua fé, sempre pronta para ajudar os outros. O inspectopr ouvia. O sub-inspector escrevia. Ventura esperava. E se fosse um crime? A vida é muito parecida com um romance policial, eu sei tudo isso em pormenor, no espaço e no tempo, porque li muita literatura de polícias e ladrões, organizações secretas, matanças arumadas por seitas. No caso da Ermelinda, em vez de se suicidar ela podia ter bebido acidentalmente, com outro líquido, o veneno dos ratos. O Ventura impacientava-se e só veio a sossegar quando a polícia abandonou as investigações e deu o caso por encerrado. Ermelinda suicidara-se. Honradamente, aliás. Deixara a casa num brinco e o resto do veneno no caixote do lixo, impratricável. Hoje estou de pé, encostado ao muro de grés sangrenta, e sinto-me perplexo como nunca: o veneno num caixote do lixo é prova de quê? De que Ermelinda se desfez dele, sem grande preciosismo, ou de alguém menos precavido após a cuidadosa encenação da sopa, ou do leite com muito açucar? Eu sei, Ermelinda, também tu tinhas medo da vigilância permanente. Ermelinda, minha boa amiga, que fizeste tu: esperaste ou decidiste.

DEMÊNCIA HONRADA


Ser demente não tem importância. O que tem importância é ser demente sem honra, é perder a honra. A menina dorme com o velho, larga tudo e vai a correr para a cave onde ele mora, atirando-se para a cama, toda nua, sempre que lhe apetece. Ele leva todo o tempo do mundo para responder àquele desejo. Ambos sabem que esse pecado não compromete a salvação, e isso também dizem os novos da nova teologia. Trata-se de um acto que sempre teve e tem apenas a ver com a nossa condição de bichos. Há quem lhe chame «pouca vergonha» e há quem diga que tudo se resume à legítima busca do prazer, o qual anda frequentemente associado à felicidade. A Rosa leva porrada do marido e nunca se queixou. A fome dela pode com todo esse peso, cada dentada nas mamas aguça-lhe a onda de gozo que entra nela, por baixo. São coisas vulgares e misteriosas. Está sempre só, a Rosa, leva porrada mas não muda de homem, esperando pela noite e sabendo qual o trabalho sujo do marido e o nome dos gajos que foram para o Tarrafal pela língua dele. Já lá estive, desgraçadamente por causa de um erro judicial, mas eles não sabem distinguir um vagabundo de um doido honrado. A «frigideira» acaba com a gente em dois tempos. Mas o importante é salvar a verdade, se for caso disso, dizendo estrategicamente a mentira. É o que fazem os pintores, os escultores e até mesmo os poetas, em verso. As pombas de pedra não voam mas os artistas inventam a forma de parecer que sim. Há cada vez mais aves negras voando neste quadrado de céu. Serão corvos? Dantes havia mais pombos, pombos simpáticos, diria mesmo indispensáveis, matreiros umas vezes, coniventes quase sempre, rodeando os nossos pés, passos curtos, partidas rápidas. Até que um dia foi a hora do Cunha, professor aposentado, que sabia muitas coisas sobre pássaros e passeava pelo Parque Eduardo VII. Morreu de um derrame cerebral, as artérias inchadas, a voz de canhão, a bondade escondida na fúria. Os alunos gastaram dois séculos para perceberem o que ele queria dizer com o destaque da palavra inquietação. Inquieto é mundo, és tu, e até os desenhos borrados que os filhos-família rabiscavam na sala do Cunha, Mestre de uma aula fatídica. Morreu, caído no banco, rodeado de pardais. 1
1 fragmento de «O Bolor e as Reformas de Papel», de Rocha de Sousa, autor igualmente dos desenhos e fotografias publicados neste blogue, excepto os documentos da imprensa ou televisão.

GLOBALIZAR OU DESENSINAR


Um dia, na longa depressão do país, os poderosos foram desalojados do seu molde, destituídos portanto, presos preventivamente, por pouco tempo, para logo deixarem o território nacional às mãos de outros poderosos, porventura bem aventurados, que proclamaram optar pela liberdade em democracia, pela descolonização das Províncias Ultramarinas e pelo desenvolvimento da Pátria. Foi assim uma espécie de festa, um primeiro de Maio irrepetível, a súbita desconstrução do Império e do Regulamento de Disciplina Militar, capitães e tenentes a mandar em tente-coronéis e coronéis, e até mesmo em genrais, proclamando-se, ao jeito de um Guevara lusitano, isto é, em proposição romântica, donos provisórios do mundo português, do alto das terras à tribunas da revolução.
Foi assim que muitos protagonistas, julgando escrever a história, se apropriaram das estruturas educativas, moderníssimos, para as colocar ao abrigo de um eixo unificador. A par de tal tarefa, grupos escolhidos, sempre enquadrados por militares, calcorrearam veredas entre aldeias para explicar a própria revolução, para falar do homem novo, dos amanhãs que cantam, das nacionalizações que permitiriam a universal libertação do espaço nacional em nome da justa distribuição dos bens, porque a terra era daqueles que a trabalhavam, incluindo grandes empresas bem conhecidas em todos os aspectos pelos operários que lá trabalhavam. Portugal tornou-se a breve trecho, entre esplendorosos fins de dia, numa caravela adornando, o próprio pano a tocar a água do Tejo, barco pequeno empenhado, num último esforço, em aportar à areia das sete colinas e aí renegociar a história e os direitos do povo.
Os direitos são muitos, todos o sabemos, prioritários em qualquer revolução. E por isso se procurou, desde logo, alfabetizar as gentes solitárias das montanhas, desde as primeiras letras e as verdades simples da política. Enquanto um novo exército de novos pedagogos desensinava os primeiros Governos Provisórios, o verdadeiro sentido das velhas cartografias, entre escolas que ninguém queria, munidas de cursos técnicos cujos diplomas, sem sinais de licenciatura, abonavam aos finalistas uma ração de saber prático, as elites varriam os escolhos - aliás pedras preciosoas pelas quais se tinha acesso tanto ao conhecimento como às tecnologias da criação e da sobrevivência. Mas fora por esse lados, na província e na capital, que gerações e gerações aprenderam o corte das matérias, a ondulação das madeiras, o tratamento dos metais, o brilho dos vidros e o vigor das letras, além da incandescência eléctrica a par de secos livros que os contabilistas tinham de devorar. Estes últimos, mangas de alpaca, foram contudo os mais recrutados pelas instituições bancárias, empresas que investiam neles uma apresentação cuidada no rosto e na fatiota. Um tempo de marketing meio provinciano, termo inicial da imagem viva para mais protagonistas. Eram empregados, nunca seriam trabalhadores, marca social do futuro. Operários nas fábricas, empregados de balcão nas lojas ou nas finanças. Mas os meninos que trabalhavam nas grandes fábricas têxteis ou de calçado, coziam o pão que o diabo amassou e começavam, por seu lado e assim, honradamente por baixo, um futuro talvez mais difuso. Honra, explicava-se com unção, acabado o tempo do pé descalço e dos rebanhos acomoddaos noutras serranias, após missas geladas.
Ensino unificado, então. A revolução, a mudança, a igualdade. Massificação dos infantes discriminados à entrada para o Superior Universitário, ideia de uma Universidade acima dos trabalhos manuais, antiga, clássica à sua maneira, devotada aos possíveis processos de investigação, sempre e sempre laboratórios escassos, com orçamentos em miniatura. Em todo o caso, ninguém largava a liurgia, os actos de pomba e graduação dos docentes. Lá fora falava-se em multiplicação das oportunidades no mundo das nacionalizações-desnacionalizações, confusa reimplantação dos cursos e cursilhos, a par de uma vaga memória montessoriana que libertou os meninos dos exames e ensarilhou os docentes numa deriva de hediondos cruzamentos pelo país fora, saltimbancos do novo mundo em que o trabalho, como vão dizendo os governos, munca mais será estável. As ciências da educação tomam o lugar da pedagogia em directo, parecem as «Pedagógicas» de outrora, e consolidam a invasão dos pedagogos, dos psicólogos, afundando núcleos de cada percurso-curso nos imensos silos dos mestrados e doutoramentos. Nunca mais ahaverá trabalho estável e sólido, o progresso global é assim: daí resultará uma incessante distorção da própria identidade humana. O nomadismo de toda a gente começa a desensinar-nos muito que ainda constitui o superior património do homem. Ele sabe, o homem, que pode mudar, mover-se, desempenhar novos papéis, embora também tenha aprendido arduamente que a família (por agora destituída do seu papel de verdadeira alternativa) se degrada e dilacera aos poucos, assim. Por isso o homem sabe também que qualquer sistema de ensino tende para aprendizagens por cotas, que toda e qualquer aprendizagem (verdadeira, alargada) tem de começar pela descravização da sociedade actual, em ordem a um superior quadro de escolhas, normas e desígnios de responsabilidade.
Globalizar é desensinar.

sábado, junho 24, 2006

DESENSINAMENTO

ou as reformas apocalípticas

O desenvolvimento dos meios de comunicação ganhou elevados suportes tecnológicos que abrem caminhos aignificativos ao nosso trabalho criativo. Mas essas poderosas ferramentas, fertilizando a realidade do trabalho prático, tendem a esbater o espaço da nossa consciência, iludindo-a através da grande massa de informação que lhe impõe

DESENSINAMENTO

ou as reformas apocalípticas
O desenvolvimento dos meios de comunicação social, apoiado em elevados suportes tecnológicos, tendo a diluir o espaço da nossa consciência, iludindo, pela grande massa da informação, no sentido da sua verdadeira mobilidade. Nesse sentido, tendo em conta a vertigem e unificação da nossa abordagem das coisas, muitos dos resultados do trabalho relativo ao visível, por exemplo, análises ou representações, acabam por se tornar redutoras. O conhecimento dos organismos adia o aprofundamente de certos problemas, a alma deles.
As reformas mais ou menos rebuscadas no domínio do ensino (entre nós) podem responder aos problemas, e com melhor eficácia, através dos meios informáticos e de novas metodologias de trabalho sobre o real, parecem-nos fornecer aos formandos práticas cada vez menos recusáveis. Mas tudo isso depende, não da fatalidade de um futuro pendurado na Internet, antes e sobretudo, a montante, pela inovação em torno dos conteúdos, da agilidade de recriar situações e por forma a quje os alunos nunca se isolem mais do que o desejável, nomeadamente em certos campos, a fim de que não percam a fecundidade que advém do grupo num entendimento mais sólido da vida colectiva. Eles necessitam, com efeito, de uma profunda oferta de elementos interacivos - profunda, não massificante - em ordem à conservação estratégica e humanizadora ao longo do seu percurso, pontes que têm sido imprescindíveis na perspectivação cultural dos indivíduos em formação. Encontramos aqui um relavante conjunto de problemas, cujos enunciados se foram enredando pela quantidade e pela pressa dos concursos produtivos, o que reduziu a dispobilidade das universidades para a investigação, os planos médios das apredizagens técnicas, e acabando por gerar vários tipos de departamentos superiores demasiado dispersos quanto ao domínio utilitário, à invenção do óbvio consumível, cada vez mais numa lógica de conferir sentido a constantes desnecessidades. Ao querer adaptar-se a esta concepção do homem e do mundo, as reformas de muitos percursos formativos constituídos a partir dos anos 60 viram-se na contingência de gerir equilíbrios instáveis, competindo com os exércitos persuasivos do exterior, frequentemente sem capacidade de conferir aos alunos meios mínimos de julgamento, escolha e invenção, contra a génese apocalítica.
Quando os conceitos que deram corpo à chamada globalização dominaram planos estruturais, identidades, qualquer minimalismo justificado, já as esratégias e tácticas economicistas, à luz de crescimentos que tendiam a esmagar harmonias iniciadas, alastravam pelas estradas da comunicação e mudavam imensos aparelhos produtores de um continente para o outro com breves operações de download. Antes de promoverem ponderações entre lugares e modos, abrangendo instituições de cunho internacional, a quase totalidade dos gestores de equipamentos transnacionais lançavam projectos multiplicadores de necessidades falseadas, apoiando-se na mediocridade crítica das populações, nos mimetismos mais elementares, na hipnose colectiva largamente assegurada desde um longo e locrativo embuste que tornava o inútil em marca indispensável ao estatuto frívolo que a especulação industrial permitia. E que foi sempre, pelo menos desde o século XIX, a forna cínica de extrair da fome a abundância. A «revoluação» burguesa, ao institucionalizar-se, inventou cenários, entre novidades sedutoras, incrementando a competitividade, a concorrência, os mercados sujeitos a monopólios ainda hoje
projectados em megaconstruções de exploração comercial, em níveis absurdos de multiplicação
de lixos. A própria Igreja Católica contribuíu para tal alienação, desinteressando-se de uma pedagogia forte, reguladora, da cultura equilibrada do consumo.
À Esccola - no plano da educação, no espaço do ensino - teria, ao contrário do que se faz em termos de serviço, e pelo nomadismo selvagem dos docentes, competiria despir-se de princípios aprisionantes da abertura do espírito a uma visão mais ecuménica dos grupos, entre as vias da solidariedade e do social. No plano educativo, todos estes problemas se cruzam, convergindo para polos decisivos, num quadro social de solidariedade. No ensino, o problema também passa pelas quantidades: porque despejar informação sobre massas de alunos é já estar próximo de um procedimento apocalíptico, implicando a constituição de grupos discentes não integrados - rebeldes com e sem causa. Essa não pode ser a opção de instituições bem equipadas; ou não é o modo de aceder ao imediatismo informático, é antes um comportamento epidérmico, ao mesmo tempo devastador. A um despojamento criterioso, com metodologias bem assentes na análise e na crítica, incluindo o entendimento ideológico do mundo, deverá corresponder à rejeição dos inqualificáveis «buracos negros» para onde tudo pode ser absorvido, gente, planetas, galáxias. Para rodear o aumento do número desse buracos, o ensino tem de acordar para uma dimensão menos rasteira, a das nossas qualificações profissionais que se dizem urgentes e os sistemas de contrato de trabalho negam completamente. Um ruído de todas as espécies, do mau gosto também, faz das nossas cidades lugares impróprios para a condução de uma vida equilibrada e de qualidade. Os grandes espaços, ou parques destinados a redutoras ludicidades, encaixam-se junto das bases para concertos de cultura de massas. Acrescentam-se os lugares de esmagamento físico e mental, onde multidões maníaco-depressivas se deleitam, em plena catarse, com jogos mutilantes, estádios para novos gladiadores, vias recorrentes e trágicas como reverência pelos santos, heróis virtuais, chefes religiosos e papas da nossa insignificância. E de que resistência se fala aqui? Certamente da que, na base do equilíbrio comunitário, em dimensões apropriadas aos grupos de famílias, seja capaz de aprender com a força do vento na experiência dele, sem depender apenas de gráficos e de massa de texto. A Escola deve dedicar-se a excluir do seu espaço cultural os males da obesidade palpável que desapetece a palavra e a sabedoria do ser. Não se trata de fazer aqui a defesa do miserabilismo, nem daquele minimalismo mais desproblematizado proposto por certas vanguardas no século XX. É importante reconhecer profundamente os limites de tudo o que se excede e nos envolve, anichando-se dentro de nós mesmos, a fim de que tenhamos condições e vontade de ser feliz. A civilização - cada vez mais autofágica, mais apocalíptica - perde assim o seu rosto, deixa de o ser, abastarda os seus maiores valores culturais, a referência patrimonial, reduzindo o indivíduo a um replicante assombrado com a sua breve vida e no desperdício da engenharia implicada, programa biológico, inteligência, destreza, surpreendente capacidade de amar. Devemos estar muito atentos, com efeito, ao que acontece na abertura do século XXI - pela Escola, superiromente. É preciso observar tudo o que se excede contra a fronteira humana e na perspectiva da inovação harmoniosa do objectivo que nos habita. Ao contrário do que parece, a Escola, em vez de apocalíptica, pode er muito mais simples e integrada -- projecto universal, entre diferenças, se as nações ensinarem aos seus filhos que um vulgar papel dobrado, riscado, recriado, pode valer mais, e ser mais fecundo, do que a placa onde se enterram os polegares na velocidade boçal dos jogos que corrompem o mundo informático e os métodos pedagógicos mais limpos. É preciso, com efeito, começar um vasto rapúdio pelo desmembramento do mundo e o súbito ou lento extermínio da terra pelos desígnios apocalípticos.

PASTÉIS SECOS






comunicação em pastel






Quando ouvi falar da «revolta dos pastéis de nata», e ainda por cima na televisão, lá para a noitinha, cheirou-me a uma verdadeira mudança de critérios naquele meio de comunicação visual - ou mesmo nos nossos hábitos urbanos, até de madrugada, toda a gente a pisar as cascas duras daqueles bolos geralmente falsificados, canela por fora, leite creme torradinho a fingir rigor e competência.
Lá fui ver. Aquilo deve ser tomado por cultura, anti-cultura, vontade desimaginada de perceber a nossa envolvência urbana, nacional mas com bom humor, uma pitadinha de non-sense, amável conversa entre convidados a quem se pode tratar por tu, miúdas giras das novelas, vagabundos disfarçados de intelectuais, intelectuais soi-disant, modelos descarnados, de perna cruzada, e outra gente assim, mais ou menos, nada de perturbador. Revoltas desta forma até com pastéis secos, do século XV, achados há meses por arqueólogos emergentes, apanhadores de cacos e tíbias. Arqueólogos não vi, em todo o caso, a não ser que o pivot, rapaz simpático, que usa boina, inventa graças e acredita que a televisão de hoje pode ter este formato, estas falas, os penosos vídeos que pontuam as partes do programa.
Dos temas, que dizer? Alguns%2

sexta-feira, junho 23, 2006

O CÍRCULO da QUADRATURA

Quando tomei contacto com o programa televisivo «A Quadratura do Círculo», mesmo antes de o ver, nunca me passou pela cabeça que ia assistir a demonstrações ou especulações do dominio da geometria. Mas imaginei uma coisa dura de roer - o que se agravou quando soube que Pacheco Pereira era a figura de proa do triângulo inscrito no círculo - e ainda, por essa figura, me lembrei daquela maníaca certeza do Almada

APAZIGUAMENTO

Num dia excessivamente nítido,
Dia em que dava a vontade de trabalhar muito
Para nele não trabalhar nada.
Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,
O que talvez seja o Grande Segredo,
Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam

de Alberto Caeiro escultura de Paul Neves

quinta-feira, junho 22, 2006

O CÍRCULO DA QUADRATURA

um problema insolúvel a noite dos sinais vivos











Quando tomei contacto, na altura, com o programa televisivo «A Quadraturado Círculo», antes mesmo de o ver, nunca me passou pela cabeça que ia assistir a demonstrações ou especulações do domínio da geometria. Mas imaginei uma coisa dura de roer -- o que se agravou quando soube que Pacheco Pereira era a figura de proa de uma espécie de debate sem solução. Inscrever um quadrado num círculo não é difícil, mas tornar as suas áreas iguais parece complicado. Lembrei-me daquela maníaca certeza do Almada que afirmava ter encontrado na recôndida convexidade de uma pedra enorme, existente no deserto do México, o sinal cabalístico por excelência, no qual convergiam linhas invisíveis vindas de todo o esboço divino do universo, muitas vezes aí se cruzando em direcção a galáxias distantes, eterna norma que o Mestre parece ter evocado ao «entrançar» as mais diversas figuras geométricas na sua composição para o átrio da Gulbenkian, insidiosamente intitulada «Começar». Aqui se aproximam a cabala artística e o imaginário da ciência após o «Big Ben».
Se Almada Negreiros estivesse vivo e pudesse assistir a dois ou três episódios da série televisiva «A Quadratura do Círculo», diria logo que a geometria da sessão procurava relacionar a análise política com uma composição ruidosa operada através do círculo, do quadrado e do triângulo. Ele encontraria, entre outras hipóteses, uma arrumação por defeito nos pontos relativos aos três participantes no debate; talvez porque a sua relação triangular com a mesa tinha viabilidade completa, mas já era difícil misturar o «pivot» numa simbiose rigorosa, matemática e geométrica, na ausência de um ponto significante . O círculo, esse sim, sendo uma figura absoluta absorve todas as outras.
O mistério da colocação das figuras na lógica do título tem constituído para os espectadores, com efeito, um problema singular enquanto decorre a emissão. Muitos insistem no facto de Pacheco Pereira estar em campo quase metade do tempo, devendo-se tal facto à posição geográfica desse protagonista. Pacheco Pereira acontece sempre como vértice, porventura segundo a ideia de Mestre Almada. No vértice, a que a realização e o próprio «pivot» se submetem, Pacheco Pereira ganha uma imperativa prolixidade circular, sobrepondo-se aos ruídos todos, aliás no modo insidioso ou lasso com que sempre se dirige aos outros, a nós mesmos, cabeça um pouco inclinada, ora para a direita, ora para a esquerda. Nem todos os telespectadores reparam que os outros participantes são remetidos para uma posição sempre lateral: há qualquer coisa de enviesado e secundário neles, pois a verdade é que, nas maiores falas de Pacheco Pereira, seria possível e conveniente fazer planos intercalados dos que estão calados, para se perceber que não sairam da sala nem foram à casa de banho.
O coordenador do programa, pouco telegénico, sentado não se sabe bem onde, exercita, de quando em quando, uma uma nota de pequena sabedoria, inserindo-a nas fendas das falas geralmente baralhadas, como é próprio da vivacidade, da dinâmica, que um programa de televisão deve propor. Quando ele tenta terminar o seu insert oral já a voz de Pacheco Pereira o cavalga, ralacionando-se igualmente com os valores de Pi e de r do círculo da quadratura, pois é esta, segundo diria Almada, a mais adequada designação daquela íntima ou maçónica troca de palavras e rituais. Políticos e política circular: o círculo - resolução de um círculo a um quadrado ou o problema insolúvel. Pacheco Pereira, sempre à espera de falar e sempre a falar na mesma, procura dar consistência verificável ao lado do quadrado, tornando-o vértice de todas as prioridaes. O lugar (cenário) aconchega bem os sacerdotes -- e ocorre-me esta palavra, tanto pela função deles como pelo clima de sacristia em que se confrontam.
Apesar de tudo, entre elipses e novelas que diluem a clareza das opiniões sobre os asuntos, a minha obrigação é a de felicitar Pacheco Pereira por ter suavizado bastante as suas intervenções, embora ainda não consiga apagar a repetida e gritada vontade de ganhar espaço aos outros, aos próprios ouvintes, como acontecia no chinfrim da TSF, «Flash Back», de má memória. É que os ouvintes ou os telespectadores tabém contam. Mal sabe a maior parte deles que Pacheco Pereira se entende bem com a «quadratura do círculo», pois sabe perfeitamente que as suas afogueadas certezas e complexas deduções irão parar inexoravelmente naquele ponto que Almada Negreiros achou no México, debaixo de uma pedra que tinha dez vezes o tamanho dele. E também é certo que ainda ninguém se atreveu a acabar o problema intrínseco do painel «Começar» -- operação que resiste a todos os debates e a todos os ruidos contra a razão. A fala terminal é outra coisa. Por isso o Mestre disse uma só vez: «Há pontos finais».

terça-feira, junho 20, 2006

O MAL DO EIXO.















as vozes na noite

Diz-se do eixo: linha recta real ou imaginária em torno da qual um corpo efectua ou pode efectuar um movimento de rotação. Peça cilíndrica em torno da qual certos corpos têm movimentos giratórios. Mas há dicionários que falam em jogos de badeixo, coisa de crianças, ou nos orgãos dos vegetais. E depois ainda há as coordenadas e as ordenadas, a simetria, o eixo da Terra, o eixo óptico - além das sabidas falas populares como andar fora do eixos, meter as coisas nos eixos, eles que não se cuidem dos eixos e vão ver como elas estalam.
Personalidades simpáticas e cultas, de língua afiada e eixos invulgares, batem papo, uma vez por semana, no programa O EIXO DO MAL. Já falaram muitas vezes do Bush, porque este insólito presidente dos Estados Unidos tem um sétimo sentido que o faz descobrir eixos do mal a torto e a direito. Está bem de ver que o problema dele é encontrar-se fora do eixos. Os senhores do programa, que gozam gostosamente o modo de ser português, o que seria interessante se eles se ouvissem rodando em torno de cada eixo pessoal. Todos eles, luminosos, lusitanos, um pouco enfatuados e em parte letrados, usam tesourinhas entre os dentes para cortar aqui e ali, ora no Sócrates, ora no Cavaco, ora no Soares, ora no poeta, e ainda no Médio Oriente, nas pessoas que se deixaram fotografar desgovernando qualquer província, curiosidades, facilidades, a Educação, a Ministra, os professores.
Estes protagonistas de O MAL DO EIXO são conhecidos dos meios da cultura e é provável que as suas vozes sobrepostas estejam a falar de cultura, talvez para alienígenas e não para portugueses, pois as falas embrulham-se e deixam de fazer sentido. Não vou declarar que lhes devo respeito e à televisão já bajulada por muita gente.
Mas há também uma senhora. E vou dizer o nome da senhora, Clara Ferreira Alves, porque esvreve belíssimas crónicas na ÚNICA, brinca mas sabe com o que brinca e como, é uma bela mundana no sentido de quem conhece o mundo e não precisa de pintar o cabelo para cortar a direito. Eu gostava que ela fizesse três crónicas sequenciais sobre o Eixo do Mal, incluindo um passeio clandestino pela Coreia so Morte.
Falta aqui um pouco da tal pedagogia que desbaratámos há anos para queimar o ensino. Talvez assim, seguindo a chorona e melancólica música do genérico, se conseguisse menos certezas de mercado e melhor faladura sobre aquelas coisas subtis que a Clara faz deslizar aobre a mesa.