terça-feira, julho 31, 2007

NA MORTE DE INGMAR BERGMAN

Bergman 60


Não é possível pensar o cinema, na sua globalidade, sem citar Ingmar Bergman e a sua obra genial, os sonhos, as amarguras e os encontros da existência, os retratos de personagens inesquecíveis, uma deriva nostálgica pela vida interior de gente que colide com os desastres do mundo. São raros os autores, em cinema, que tenham, como ele, aprofundado a alma humana, a sua inquietude perante os sinais do ser e da morte.
«Para Silva Melo, a mistura e contaminação entre cinema e teatro, no autor sueco, salta aos olhos». E cita obras tão relevantes como O Sétimo Selo, Lágimas e Suspiros, Persona como referência a um puro Strindberg, ou As Três Irmãs, a partir de Tchekov.
O depoimento do crítico João Lopes tem um notável reflexo nas condições de recepção do grande cinema entre nós, durante e depois da ditadura. A actual castração do público português quanto a esta arte tem sido verdadeiramente criminosa, baseada em magníficos sistemas de distribuição, monopólio de salas minúsculas onde o som, colocado muito acima, destroça a qualidade e os ritmos internos de muitas películas».
Oiçamos João Lopes: «Para mim, acho que é disso que devemos falar a propósito da morte de um homem que celebrou a frondosa singularidade do género humano. E nos fez saber que a relação com o outro (humano ou divino) é sempre infinitamente complexa, desafiando-nos a viver apesar da certeza da morte. Ou melhor: contra a certeza da morte.
Acho que devemos falar desse escândalo que faz com que existem seres tão extraordinários como Bergman, capazes de nos mobilizar para a dificuldade de estarmos vivos e compreendermos os outros (e nós próprios), ao mesmo tempo que as formas de ficção mais poderosas nos submetem a uma lógica de crescente infantilização e banalidade.
Sermos dignos da herança ''bergmaniana'' é lidarmos de frente com a sua recusa de vulgarização narrativa e o seu empenho em defender a irredutibilidade de cada manifestação do factor humano. De resto, vejam-se os seus filmes».
Direi agora eu próprio, para terminar: é preciso separar a indúsria do cinema do chamado cinema de autor. Seria mau, certamente, que tivéssemos de suportar pintura realizada por uma centenas ou duas de operários trabalhando segundo o princípio da cadeia de montagem.

persona
Esta brevíssima imagem de um dos mais belos e
profundos filmes de Bergman lembra-nos
como o cineasta se apropriava do
dos fantasmas que se movementre nós e
nos duplicam e se desfocamna beleza da vida e das suas distâncias
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Bergman já em idade avançada, sempre ligado ao teatro, de que nunca se esqueceu,
com o qual deixou para a humanidade indeléveis sulcos sobre o entendimento
da vida e da morte

domingo, julho 29, 2007

PARA ALÉM DO INFINITO


«Blade Runner» é uma obra de culto do cinema de ficção científica, deslumbrante reflexão sobre a manipulação bilógica do homem, entre a sua necessidade de sobrevivência num planeta chuvoso e apenas tolerável através de próteses tecnológicas (aquilo em que se tornara a Terra) e a tentativa de recriar a vida humana através de um caminho mais complexo. Tendo produzido seres de configuração integralmente humana, capazes de uma relação normal, funcional, o homem mal se apercebeu de que realizara uma criatura milhares de vezes superior a si mesmo, o que, de forma não muito longínqua, a realidade biocibernética poderia eventualmente conceder aos robbots capacidades bastantes para se multiplicarem e aumentarem os seus poderes. Estes seres denominavam-se replicantes, e o seu tecto de vida, como prevenção do homem perante a grandeza insondável do ser gerado, dominado por programas cibernéticos, teve que ser reduzido nas gerações mais recentes. O Homem-Deus, mais inseguro do que se julgara, dispondo de uma vida que rondava os noventa a cem anos, teve de programar os seus replicantes para uma resistência vital de quatro anos apenas. O que não deixou indiferente a inteligência replicante, para quem a vida ganhara um enorme valor cognitivo e afectivo, uma surda vontade de encontro e de pesquisa no espaço e no tempo.
A tese desta obra de grande qualidade, mesmo nos adereços que explicam e conotam os elementos de toda a relação dos seres e dos equipamentos, vem colocar-nos o problema essencial da vida: e é bem certo que o limite dos replicantes não passa de uma trágica metáfora sobre a própria vida humana, o seu sentido, a construção de estações espaciais para uma vida bem pior do que a dos replicantes, entre pesquisas e projectos de emigração na galáxia, a tecelagem de um futuro utópico mas já visionalizável. São esforços desesperados, num grande espaço de descoberta e construção, mas que está longe de vencer espaços imensos, afinal indecifráveis, mesmo como vanguarda no estudo colossal de 682 galáxias e milhares de astros singulares, de sistemas semelhantes ao nosso, mais distantes e solitários, em todo o caso, como nos dá a ver o terrível livro «A Nave da Esperança», de Edmund Cooper. Nesse caso, nunca chegamos a lugar nenhum, habitável, colonizável, sendo envolvidos pela curvatura do espaço, ao fim de centenas e centenas de gerações nascidas e educadas no cosmos, em torno do mito de chegada, e chegando absurdamente a um sistema onde um só planeta acusava algumas condições de vida. Era a Terra, obviamente. É uma pergunta crucial sobre a nossa natureza, a pergunta sobre o que somos e para quê, a par da vastidão percorrida minimamente durante mais de mil anos luz, em nome da descoberta das diferenças no exterior, da pulsão inimaginável do universo, e para descobrir mais do que isso -- um lugar estável onde a consciência humana tivesse apoio biológico e logístico. Porque a morte, cobrindo de absurdidade todos os nossos sonhos, não parece dominável, nem com uma vida prolongada e conservada (potencialmente recuperável para a ternidade).
Se os meios tecnológicos nos permitem, agora, descortinar, a milhões de anos de luz de distância, um espaço onde corpos e forças colossais se movimentam, se entrechocam por vezes, recriando o tecido do infinito, a verdade é que tal situação mais nos dá consciência da impossibilidade de racionalizar limites, entre a vida e a morte, entre este espaço e outros e outros, todos maiores do que o nosso próprio universo, e em expansão, em mutação, brutal de força e pulverizável no vórtice dos buracos negros. A condição humana é assim tão «explicável» pela imagem do bispo que jaz não sabemos onde, como, pelo replicante perplexo sob a chuva, ou por aquele outro, estupefacto na alucinação do sangue, a rede do sangue, geometria sempre mutilada -- todos nós perplexos, furiosamente amedrontados, enfim incapazes de reconhecermos quem somos.





sábado, julho 21, 2007

DO BLOG AOS RETRATOS SEM ROSTO



A expressão de ideias e sentimentos através das condições específicas do blog é uma recente aquisição do vasto campo instrumental que o homem tem concebido em nome da grande variedade de projectos e aproximação dos indivíduos entre si, quer para trocar ou partilhar informações, quer para fazer emergir do vazio presenças ignoradas, a voz escrita de alguém, retratos com ou sem a tradução do rosto. Eu não tenho nenhuma teoria bloguista, nem de concepção estrutural, nem de qualquer especificidade linguística desse meio, sobretudo nas ligações interactivas entre a palavra escrita e a imagem paralítica ou cinética, conceitos que decorrem directamente do cinema, da fotografia ou da televisão. Antes de criar um blog, aprendendo as operações aos solavancos, como acontece frequentemente aos autodidactas, o que eu sabia era-me transmitido por outros meios de comunicação, incluindo uma iniciada mitologia em torno de modos de formar, processamento técnico, temática inusitada, debate no âmbito do testemunho e da política. A isto se adicionava o grande universo da Internet, a sua pluralidade de temas e dados do conhecimento, os patamares operativos para os quais nós próprios podíamos reenviar réplicas de coisas, criações as mais diversas: a concavidade sem medida da Internet receberia tudo isso, doutrinas inteiras. Ora essa realidade (em parte virtual) fascinava-me um pouco, ao mesmo tempo que me levava a cogitar nas lacunas possíveis, nas sobreposições, no excesso, no lado perverso de certos aproveitamentos da curiosidade e dos mimetismos humanos.
O Blog, pelas suas características, despertava-me uma grande curiosidade, não tanto nas propriedades da forma (as quais existem noutros campos assumidos da criação literária ou pela imagem) mas sobretudo pela sensação territorial que parece legar-nos, tendo no seu campo autónomo indicadores de liberdade de expressão verdadeiramente aliciantes. Esses indicadores, embora veiculados à lei geral sobre a responsabilidade do nosso poder de intervenção pública, ou diante de acontecimentos graves, concediam-me uma considerável margem operatória, a qual, com efeito, ultrapassava a mobilidade armadilhada da pintura, a escassez dela perante a grandeza de tudo o que nos habita e desejamos partilhar com os outros, a pouca circulação do quadro em contraste com a viagm imediata de cada «postagem» que me ocorresse alinhar no campo.
Mas o meu maior apelo dizia já respeito à condição de habitante do blog, sabendo que o seu nome, desde logo, atrairia visitantes curiosos, concordâncias, discordâncias, expressas ou omitidas. Isso dependia de muitas coisas relativas à minha prestação, à sucessivas presenças, gritos, imagens, que se organizassem em termos de mensagem. Como em qualquer outro suporte, essa intervenção é claramente possível em termos de abertura, de contracção minimalista ou vive-versa, na linha, por exemplo, do que aconteceu com a art pop, numa dádiva coloquial às falas trocadas, aos encontros ficcionais, às cadeias de consumo, pela oportunidade de um comentário ou pelo tratamento das mais diversas situações. Estaria sempre livre para desenhar uma escrita breve e simples, a par de dialogar, nesse mesmo sentido, com os meus pares no domínio mais erudito da teoria da arte ou mesmo da sua política em redor.
Desde da primeira pessoa a quem enviei um e-mail no sentido de que ligasse para o «desenhamento», a corrida (escorreita, no meu caso) nunca mais parou. E é aí que se verifica o problema mais profundo (embora por vezes populista) que me tem envolvido no estudo sobre a imagem ausente, a voz insonora, o retrato sem rosto. Claro que, à medida que meia dúzia de pessoas se aproximam de nós, cúmplices, a dimensão psicológica dessas entidades vai ganhando forma -- e é como se o nosso imaginário, apoiado em dados do conhecimento científico, parecesse retratar, um pouco à maneira dos retratos robot usados pela polícia, alguém aqui menos cmprometido com semelhanças corporais ou deduzindo tais semelhanças pelo retrato psicológico acumulado em páginas de textos, comentáros, formas peculiares de descrever as coisas, avisos sobre temas e eventos preferidos, o aceno da partida, o chamamento inicial. Trata-se de um argumento cujo afloramento nos filmes não passa de suporte de certas vias de acção. Eu vejo-o, ao outro que entretanto escreve, suponho o retrato sem rosto em viagem anunciada pelos amigos, olhares escondidos, sem se reportar à marca da fotografia de alguém. Alguém na pose da fábula, ou meramente como no pragmatismo do bilhete de identidade, forma por vezes difusa mas reconhecível como realidade essencial da face palpável. No retrato identificador (que o é, na cereza de tudo) a aparência passa a revelar um rosto, mas o que sentimos para além dele é mais do que rosto, aproxima-se do entrosamento metafísico entre duas pessoas e a vários níveis: a fotografia nunca diz o que o longo encontro cultural, pela escrita, promove num espaço e num tempo indeterminados, mas animicamente determinantes. Isso faz-nos sentir uma espécie de nostalgia do rosto imaginado ou na presumível semelhança dele com gente que pertenceu ao nosso círculo de relações, que ajudou em parte a formar o nosso habitat. O lado metafísico dos cruzamentos de mensagens pode perfeitamente, além de abrir afectos, ajudar-nos a perceber o mundo na ausência de muitas coisas que o formam. Ou nesses velhos quadros onde a representação de uma figura, sem nos mostrar quase nada dela apesar da pose e do ponto de vista, dá-nos contudo a ver a atmosfera psíquica que se desprende da personagem, uma cabeça voltada e apesar disso revelando tristeza, alguma espera indizível, as mãos (que não vemos) e no entanto sabemos como se encontram cruzadas.
No Blog, cada viagem após a consolidação do primeiro diálogo consistente, a aventura reside em fazer jornalismo, ensaio, montagem de imagens, iniciar contactos a favor de uma interactividade palpável ou meramente virtual mas fecunda. E sobretudo parecem verídicos os nossos passos de ensaio no escuro, passos que nos levam a tocar (por exemplo) a seda de uma folha dormindo, a face de alguém na desculpabilização da surpresa e do encontro, a iniciação de um afecto -- e até mesmo de um amor.
É fascinante, sem dúvida. É estranho também, em todo o caso.

terça-feira, julho 17, 2007

O ENXERTO DE SARAMAGO

Saramago, Prémio Nobel
da lingua portuguesa

Numa entrevista concedida ao «Diário de Notícias», Saramago disse: «Portugal acabará por integrar-se na Espanha». E assim, breve, à sua volta, os homens de cultura ficaram em choque: porque uma coisa é fugir por medo, passados que são séculos de história, outra é anunciar algo que nunca será uma escolha e que, como soberania importada de fora, com cumplicidades cá dentro, acaba como retrato da traição. Algumas das reacções a este mergulho em direcção à jangada de pedra, mostram fundamentada indignação: porque Saramago tem uma «dívida para com a língua portuguesa», move-se numa rodilha de azedumes ligados à «ortodoxia marxista-leninista» Mais: «uma provocação deve ser motivo de reflexão» e a mim ocorre-me dizer que uma provocação deve ser antecipadamente reflectida, sobretudo como neste caso, dada a sua importância e os créditos de quem a soltou. Apesar das suas intervenções, quando convidado pela televisão, revelarem um contido apreço pelos problemas do homem e da criação, sem derrapagens deste tipo, nota-se que o desconforto de Saramago em relação a Portugal emerge aqui e além numa espécie de elipses ou de ardilosas metáforas. Saramago é agora acusado de ser incapaz de defender Portugal»

Martins da Cruz, Ministro dos Negócios Esrangeiros de Durão Barroso, foi talvez quem mais reagiu à frase da Saramago. «A visão de Saramago é uma visão do século XIX e não do século XXI. É muito fácil odiar Portugal no estrangeiro, o que é difícil é defender os interesses de Portugal no estrangeiro, e isso o sr. Saramago é manifestamente incapaz de fazer». Nesta linha de abordagem à insólita situação, também houve reacções de muitos intelecuais e escritores, como Vasco Graça Moura ou Manuel Alegre. «Ele tem a responsabilidade de ter ganho o Nobel da Literatura com a língua portuguesa», disse o poeta Manuel Alegre. «Saramago concebe a realidade como sendo gerível com uma engenharia de racionalidade» (considerou Graça Moura). Por muito que a medalha do Nobel notabilize um homem, neste caso um português, isso confere-lhe mais deveres perante a língua e a Pátria donde se alcandorou a esse galardão, do que direitos enviesados, má fé, arrogância, eufemismos perversos. Os direitos de expressão têm de ter sempre em conta os outros -- e, em casos assim, menor sensacionalismo e profunda reflexão sobre a hipótese formulada. Por mim, na raiz do meu ser e da minha língua, da nossa cultura e considerável antiguidade, muito teria para dizer a Saramago (apesar das minha deficiências e das fragilidades não usufruirem o benefício dos media), pois considero que o escritor contraiu uma grande responsabilidade a vários níveis. Portugal honrou-o, perdoou-lhe muitas sinuosidades, conversou civilizadamente sobre os valores humanos e a necessidade da arte. A caricatura da «Jangada de Pedra», Portugal voltado para a América e a Espanha com as suas feridas voltadas para a Europa, a cicatrizar, não tem necessariamente que deslizar para o sul. E era melhor a ideia de que essa ruptura servisse para ligar de novo os dois continentes, voltando assim a uma certa verdade original. Saramago deve reflectir, partindo de dentro de si mesmo e fazendo auto-crítica. Nas pedras de Lanzarote. Observando as condições capazes de permitirem saudavelmente o enxerto de uma coisa na outra. E a lembrar-se da humilde grandeza com que escreveu «Levantado do Chão».

segunda-feira, julho 16, 2007

ANGOLA INDEPENDENTE

O carro derrapa na areia que se espalha pelo alcatrão. Coisa pouca. Um menino negro salta como gazela. Tem medo do visitante. Já vai longe, remover lixos em contentores, saltita num alcatrão devastado. A península que fecha a baía de Luanda do lado esquerdo, no crepúsculo, palpita de risos. Ontem morreu aqui um casal por assalto à mão armada. Os lugares são contingentes, sobretudo à noite. Há postos secretos, a essas horas, que se ligam entre si na passagem de drogas e outro comércio ilegal, pobres pescadores além. Os risos. Festa da nova sociedade angolana que se apropria de tudo e de todos, sacudindo perfume e sedas, em círculos concêntricos ao poder. Perto dos restaurantes, um polícia coloca-se à frente do carro. Deveria ter uma luva branca (imagino de memórias estranhas) mas a pistola metralhadora que o adorna faz bem o trabalho da luva, fica a mão. Tenho documentos especiais, um carro de luxo e um cartão de imprensa. O homem faz-me a continência: passo devagar, entre risos ali perto. Festas depois de festas, os ricos dispõem da cidade como querem, sobretudo na zona alta. No tempo da guerra, quando aqui estive, tomava banhos de água morna. Olho para o interior dos restaurantes e no Miami, o mais moderno: a alta sociedade luandense bamboleia ancas, seios, jóias. Os rostos pintados brilham, escorrem cremes, imitam até a sociedade colonial que o tempo ajudou a desfazer, bem depressa substituída por uma outra, essa assombrosa guerra civil que deixou o país arrasado. Em grandes áreas fecundas mas abandonadas, onde um dia haverá fósseis incongruentes, alguns técnicos procuram catar e desactivar as minas que ficaram no terreno, sem notícia, nem carta. As cidades destruídas ainda hoje se apresentam assim, talvez moribundas ou mortas, mas onde vemos por vezes meninos e mulheres carregando víveros e coisas de uso comum, compradas nas viaturas que vão e vêm, invisíveis. Mataram um casal mas não foi só ontem. Tudo o que é gente na noite, na posse de alguns objectos de uso comum, pode ser espoliado. Negar é enfrentar duas ou três facadas, a morte quase certa. Aquela gente que desceu à baía, conduzida por pretos luzidios, veio cumprir o ritual dos diamantes e do petróleo, comemorar aniversários, arranjos floridos de jovens destinadas a casamentos da «alta cidade.» Cada esbanjamento festivo é ornamentado com fogo de artifício, porque os diamantes ficam no cofre. E entretanto os seguranças lá vão estando atentos, descortináveis a olho nu. Os carros voltam de madrugada. Amanhã, aqui e além, nos lugares de luxo, a gula e o prazer voltarão. É um direito, dirão alguns. É roubo e usurpação, dirão outros. Subi ao depósito das águas e olhei em panorâmica o mar a perder de vista dos muceques, verdade social que teria um milhão de habitantes antes da independência e hoje, na cintura imensurável, alberga mais de quatro milhões de almas. O ar parece atravessado pelos cheiros de várias pestes associadas. A lama envolve a periferia, numa terra de ninguém, mas na qual, como dantes, os meninos brincam sem nexo, estatelando-se naquela espécie de barro escorregadio. Há gente poderosa, de visita ao governo do país, no alto requintado das residências, e os vinhos e os acepipes vão de ambulância para lá. Ali mesmo, onde acharam uma criança abandonada no entulho, coberta de sangue e pó, e já morta, passam os grandes senhores a caminho das suas mansardas. Luanda, aliás, acabou por ser destinada a fechar quase toda a Angola no seu interior, entre bairros degradados e muceques imensos, enquanto a verdadeira Angola se ignora a si mesma, de um lado os imensamente ricos, de outro a pobreza extrema, os pestíferos, os estropiados, meninos e velhos sem pernas, vitimados pelas minas ignoradas no ponto exacto, prontas a explodir e fazer vítimas durante um bom par de décadas. Curiosamente, os putos que brincam na lama ficam temporariamente irreconhecíveis, pretos, brancos e mulatos de súbito de cor homogénea e amiga. A outra e imensa Angola, fecha-se, pelo seu lado, nela própria, desconhecendo-se para além dos que roem ou cultivam raizes e deixa que o vento escorra para sul, anharas totalmente vazias . Do alto, num táxi aéreo, pode ver-se essa desolação. Voando mais baixo, posso tirar fotografias de aldeias inenarráveis, onde se descortinam crianças, mulheres batendo a mandioca, homens usando próteses e muletas, deambulando pelo patamar de terra batida, como se o mundo tivesse parado nessas imagens. Nas terras de ninguém é tudo lento e essencial, a breve passagem dos helicópteros dos senhores do poder e, em baixo, as vítimas da independência, comendo a mandioca que o diabo amassou.
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Nota: este texto foi inspirado na reportagem de Luis Pedro Cabral (Única, 15.07.07) e as fotos
adaptadas da peças de Sandra Rocha (Luanda). Aspectos complementares derivam da experiência da guerra que o autor deste Blog viveu mos anos 60.










quinta-feira, julho 12, 2007

CENTRIFUGAÇÃO GLOBAL DE BOLONHA

Este não é o Olho de Big Brother
«1984», de Orwell já passou. Mas enganam-se aqueles que suspiram de alívio e pensam que o mundo alegoricamente mitificado naquele livro não virá, nas suas diversas vertentes, confirmar-se mais tarde, expandindo-se por todo o lado, com grande incidência nos grandes países. A gula terá entretanto outro nome e o caos imensurável nunca existiu nem existirá. Em todo o caso, é verdade que a tecnologia, nas mais variadas acelerações da sua caminhada, cada vez mais em nome do crescimento, concorrência, competitividade, fez com que as sociedades passassem a uma corrida vertiginosa, reacertando fronteiras e explorando todo o petróleo do mundo. Surgiram sistemas de ordenação exploratória dos recursos e da sua errática divisão. Mas as crises não poupam a odiosa deificação dos mercados, todos concorrem com todos -- e isso começa por marcar indelevelmente as metodologias da formação, o supremo bem da Educação, sempre em reforma, progredindo para um novo paradigma, como se diz agora, apesar do ruído se instalar um pouco por toda a parte e o ensino de profissões (dizem) estar aí para nos ajudar a criar cidadãos mais qualificados, justamente aquilo por que clama a indústria e os sonhadores da produção em massa. Muitos esquecem-se, nas suas boas intenções, que muitos dos nossos empregadores, entre um rapaz habilitado e outro apenas com o nono ano, acabam por preferir este. A flexibilidade no trabalho é um dos mais hediondos eufismos dos dias que vivemos, para não falar no filhote daquela teoria, cujo nome é ainda segredo de justiçao. E os nossos licenciados que o digam, cerca de 40.000 sem emprego, à espera de alcançar campos de aplicação que não sejam só os industriais.
Escrevendo na revista «VISÃO», o prof Carlos Reis resolveu, depois de uma informada contextualização, alinhar para o «pessoal» algumas «PERGUNTAS INDISCRETAS», das quais, pela sua enorme propriedade, terei o gosto de partilhar convosco:
Ao fechar a primeira parte do seu texto, Carlos Reis pergunta se «dentro de alguns anos será sustentável, num pequeno país, a existência de instituições universitárias com oferta pedagógica própria? Nesse tempo a vir, haverá lugar para a diferenciação e para a singularidade cultural? O que agora é gratuito sê-lo-á sempre? (Recordam-se de quando as leituras dos jornais na Internet era gratuita? Parecia mentira...). E ainda: não caberá aos Estados fomentarem a consolidação e o desenvolvimento de sistemas universitários fortes e fecundos? Ou será mais expedito (e mesmo mais barato) se nos ''abastecermos'' no pronto-a-aprender de grandes ''fornecedores'' sem rosto? Tudo, afinal, susceptível de ser resumido numa pergunta inquietante: terão as universidades portuguesas o mesmo destino que as nossas pescas conheceram?»
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Nota: citações do artigo referido, do prof. Carlos Reis, e enquadramento de Rocha de Sousa


A LÓGICA DO CRESCIMENTO