quinta-feira, outubro 29, 2009

TALIBÃS: NEM GUERRA SANTA NEM CONSCIÊNCIA

fotos distribuídas pela Reuters, in Diário de Notícias


Procurando afrontar os Estados Unidos, porque Hillary Clinton chegara em visita ao Paquistão, os talibãs, habitualmente infiltrados no seio da população, executaram um dos maiores atentados jamais visto naquela zona. Um carro armadilhado, logo pela manhã, começou a circular pela principal rua de Peshawar e foi disparado sobre o mercado cheio de gente, provocando uma carnificina de 100 mortos e 217 feridos, alguns dos quais em estado muit graves.
As forças internacionais, sob mandato da ONU, nunca terão meios para destruir tamanha força e uma estratégia deste género. Nem pensem os generais que comandam tais forças em qualquer tese que os faça vitoriosos, mesmo a longo prazo. Em última instância, os militares exteriores terão de enfrentar uma retirado, o que fará deles (seja qual for a encenação) os verdadeiros derrotados.
Esta grande mancha de sangue e de terror que alastra por toda aquela região, incluindo, além do Paquistão, o Iraque, o Afeganistão e o Irão, sem falar da eterna crise do Médio Oriente, é uma aventura sem retorno e praticamente impossível de legitimar perante a irracionalidade dos talibãs. A guerra santa é, sobretudo, uma guerra cega, um vazio cultural profundo, nem se pode resumir a qualquer proposta ideológica, territorial ou civilizacional. As crianças são usadas como combatentes forçados, manipuladas das formas mais abjectas, tudo em nome de causas difusas e objectivos enviezados. Contra a audição da música, dos cânticos, os talibãs incitaram as crianças a uma escola concentrada na memorização do Corão. Uma sociedade pensada assim, em que as artes não podem ter expressão nem audiência, é um «buraco negro» insuperável, sem estatuto humano e civilizacional. «Não há civilização sem arte.»

terça-feira, outubro 27, 2009

VISITAÇÃO À VOZ HUMANÍSSIMA DE LOBO ANTUNES

Lobo Antunes

Lobo Antunes, após ter publicado o seu último livro (Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar?), concedeu uma significativa e comovente entrevista a Judite de Sousa, na RTP1. Lento mas a paralisar todos os meus músculos, eu ouvia cada palavra e cada frase como a Voz mais profunda, simples, linear, inusitada, que o escritor terá comunicado em som e imagem. E era um homem brando, sereno, diferente, falando da sua doença e da dignidade dos que sofreram a seu lado, com a morte anunciada. O homem que soletrava lembranças há alguns anos, e a uma outra jornalista, era o mesmo e um outro. Dizendo, aliás, que passara a lutar por se conhecer melhor a si próprio. E falando da sua escrita, uma «pasta» de palavras que era preciso deslindar, arrumar de forma menos ruidosa no espaço, compr uma primeira página, compactar o livro, dá-lo ao mundo. «Depois de escrito e distribuído o livro já não é meu.»
Um homem que vive sem Deus e que se reune com amigos para falar das coisas que mais lhes interessa, significando o tempo e o espaço das formas faladas quase tudo o que já deixou de se dizer nos quotidianos pardos e na roda ensandecida da pequena política.



À pergunta sobre se a palavra vida é uma palavra justa para definir a sua relação com os livros e a sua relação com a escrita, Lobo Antunes foi considerando:
Nesse sentido posso aceitar a definição. De facto, ao longo da minha vida tenho sistematicamente cortado os pescoços que se interpõem entre mim e os livros, e às vezes tenho a sensação de ser uma galinha que protege os ovos. Os ovos neste caso são os livres, evidentemente. Os livros, o tempo para escrever e a disponibilidade para isso.
Uma questão de método, a entrega, a precisão e o tempo:
Sabe, quando estou com um livro, é uma questão de método. Sempre. Começo às nove e meia/dez horas, acabo à uma, recomeço. E isto todos os dias, até o livro estar pronto.
Isso não é muito esgotante?
Não. O que é mais esgotante são os intervalos entre os livros. Não sei se vou ser capaz de escrever outro livro... porque os livros não são feitos pelos outros; pelo menos nos meus não tenho a inteira convicção de ser o autor deles. Outro dia, por exemplo, eu estava cansado, tinha escrito durante muitas horas. Fui à estante e tirei um livro ao acaso. Era «Os Tempos Difíceis», do Dickens... abri o livro, assim, da mesma forma, e a certa altura de um diálogo espantoso, de duas ou três linhas, na altura em que o filho vai visitar a mãe, já velha e doente, muito doente, e lhe pergunta: «tens dores, querida mãezinha?», e ela lhe responde: «tenho a impressão de que há uma dor aí, pelo quarto, mas não sei se me pertence.» Isto é verdadeiramente espantoso. O acto de escrever, agora, é um pouco parecido com isto: dá a sensação de que há um livro por aí, mas não se sabe exactamente se nos pertence»


Sobre a escrita, a folha em branco, sofrer a escrita:
Sim, representa uma certa sensação de sentimentos misturados, sofrimento, alegria, júbilo, desânimo, descrença. Mas não deixa de ser, é evidente, um trabalho agradável. (...) Na primeira versão, a sensação que tenho assemelha-se a uma estátua enterrada no jardim, é preciso cavar a terra, tirar a estatuetazinha, depois limpá-la da sujidade, dos insectos mortos, das folhas podres, até aquilo tomar a forma de um livro. A segunda versão é um magma que tem de ser muito bem trabalhado».
Sobre o tempo para a leitura em tais períodos:
Leio todos os dias, sim, para aprender. Eu continuo sem saber nada do que é escrever, e tenho a impressão, quando estou a escrever, a trabalhar, de me parecer que sou uma criança cega, a tropeçar às escuras num caminho que não conhece.»


Saber escrever, o orgulho de escrever, que modéstia?
Não tenho modéstia, acho que tenho um orgulho humilde. Quando recebi um importante prémio, em Jerusalém, era preciso fazer um discurso, a incluir num livro (...) O que me veio à cabeça, para acabar, foi uma carta de Newton (que mudou a nossa vida e a própria concepção do mundo: ele descobriu a identidade na diversidade, descobriu que a lua não cai e a pedra que cai são o mesmo fenómeno, e isso modificou por completo o nosso conceito de tempo, abrindo caminho a toda a grande física moderna, todos os avanços a partir do século XIX, Eintein, Max Planck, outros, muitas vias foram descobertas. No fim da vida ele (Newton) escreve a um amigo, mais ou mens assim: «não sei o que o futuro pensará de mim, na minha opinião fui apenas uma criança a brincar na praia que encontrou o seixo mais bonito, a concha mais colorida, enquanto o infinito oceano da verdade continua intacto diante de mim. (...) No fundo, porque uma pessoa escreve? Por um lado, para se conhecer melhor a si mesma e aos outros, por outro lado porque a arte, apesar de tudo, talvez seja a forma suprema de dignificação do homem. A nossa única possível vitória sobre a morte.»


foto citada. A preto e branco, do autor do blog

As citações da entrevista concedida por Lobo Antunes são uma breve parte do conjunto, peça verdadeiramente excepcional e assinalável pela sua humanidade e pela beleza de cada pronunciamento sobre os homens, os amigos, a «sagração» da mãe. Alguns cortes ou muito escassas «mudanças» devem-se apenas às condições de legibilidade neste espaço e nestas condições.

SARAMGO CONTINUA REFÉM DA BÍBLIA E AFINS

José Saramago

Não é do meu interesse alimentar aqui polémicas inúteis. Em volta dos temas ligados à religião católida, o escritor José Saramago contínua debicando «os maus costumes» dos textos sagrados, antigos, pelejando por uma causa já desgastada nos dias que gostaríamos de o ver a dar corpo a um grande livro sobre a conflitualidade contemporânea, os problemas da nossa civilização entretanto confrontada com com os seus próprios malefícios e vastas populações atoladas no pântano da miséria e do horror.
Até porque, ao receber aqui comentários sobre o assunto, a verdade, como diz um bloguista, é que muitas pessoas acusam Saramago de falta de verdadeiro saber sobre a história das religiões, com falhas graves em teologia. Cito: «...ele não consegue sair de um ateísmo atávico, que ainda toma o cristianismo católico como um "inimigo de classe", sem ter nenhuma da profundidade diagnóstica com que, por exemplo Nietzche aferiu a cristianização da civilização ocidental».
Este depoimento é de um «cibernauta» que se declara não cristão e que, sobre o acto de Caim, esclarece: «Caim é filho do Anjo e de Eva, e não de Adão. O homicídio é-lhe ordenado, para que na prole adâmica se pertetue o "sangue" dos Anjos, forçados a abandonar o Éden e a humanidade. Caim não foi uma criatura vil, muito pelo contrário. Foi um "construtor de cidades», simbolismo de protector dos homens e da civilização (...) Caim tmou mulher, e não foi uma irmã. Adão e Eva e seus filhos nunca foram os únicos humanos; a sua "criação" é uma escolha: um par humano foi conduzido ao Éden para lher ser ensinada a sabedoria, A criação do mundo e do homem ocorreu muito antes. O período edénico corresponde ao da edificação da civilização humana, na antiga Suméria, cujos rios, Tigre e Eufrates, são indicados no livro do Génesis»
Este colaborador da blogosfera («Klatuu») sustenta ainda que o Antigo Testamento, muito deformado por delírios da Igreja católica ao longos dos tempos, pouco tem de fantástico, relata factos históricos, a maioria comprováveis.
«Não me perguntem o que são os Anjos, mas posso garantir-vos que não são feitos de diáfano algodão doce com asinhas». Além do mais, este correspondente, insiste que «além de que sob o ponto de civilizacional, se Deus existe ou não é irrelevante. Nenhum crente tem essa certeza, tem sim essa esperança. E mesmo com "Deus morto", todas as civilizações humanas continuam sustentadas num chão religioso. É inútil combater isso como combater o Darwinismo. O caminho é impedir que toda a forma de estupidez e fanatismo destruam a civilização. Mesmo Marx viu alguma utilidade social (ainda que temporária ) na religião... sem esse "ópio" com o qual resolveríamos a angústia do homem comum, pois se nem duas refeições por dia conseguimos dar a todos os homens espalhados pelo mundo.»

Saramgo, a estas considerações, responderia certamente que o que «não está escrito» não é susceptível de se tornar símbolo ou pressuposto ganho através de outros dados. A sua orientação parece ser jocosa, lógica, pragmática. Espero que o livro «Caim» este escrito como objecto de arte e não de análises literais a segmentos do Antigo Testamento. Cada vez são mais as pessoas que se interrogam, já despojadas de tantos adereços litúrgicos e sacros, «mas Saramago não tem mais em que pensar?»
os nomes das coisas nem sempre correspondem
a essas mesmas coisas





terça-feira, outubro 20, 2009

SARAMAGO, BRUEGHEL, AS RELIGIÕES E O PAPA

fragmento de uma pintura de Brueghel

Saramago, escritor português e Prémio Nobel pela sua obra literária, é conhecido, enquanto pessoa, por falar devagar e face austera, por ter preferido viver em Lançarote, na companhia da sua mulher espanhola, Maria del Pilar. Da obra, é incontornável citar obras como «Memorial do Convento», «Levantados do Chão», «O Evangelho segundo Jesus Cristo» ou «Jangada de Pedra». A sua última edição, do livro «Caim», caíu em Lisboa (ou no país) como uma bomba, ou seja: os amigos e inimigos de Saramago vão aumentar em número. O escritor, ateu, tem contudo dedicado obras a diversas formas de reflexão sobre Cristo, a história sagrada, o papel devastador das religiões no mundo. Desta vez, porque a obra fora anunciada como se considerasse a Bíblia «um manual de maus costumes». Ora essa nota, sendo «apocalíptica», está afinal ainda longe quer das palavras dirigidas à imprensa por José Saramago e à essência do próprio livro. A reacção violenta da Igreja Católica, sendo esperada, foi em todo o caso de uma precipitação algo ingénua, pois ninguém, nas horas dessa expressão, lera o livro, o qual estava em distribuição pelas livrarias. Creio que a publicidade e aquela frase, além do historial crítico do autor, fizeram explodir a bomba antes de tempo, incentivando, paradoxalmente, a compra deste último livro de Saramago.

o horror num quadro de Brueghel
ou aquilo que a Igreja, ao longo de séculos
foi provocando

As palavras proferidas por José Saramago em Penafiel, domingo à noite, foram certamente decisivas. Esta minha «apropriação» da notícia e dos factos pretende apenas trazer para a reflexão um certo número de questões ligadas à Bíblia e aos credos religiosos. Vivemos numa época profundamente conturbada, outras o foram há muitos séculos atrás, e o papel que a Igreja Católica desempenhou na gestão de um imenso poder herdado da sua oficialização em Roma, por Constantino, modelou o mundo em termos por vezes monstruosos: as famosas Cruzadas não eram iniciativas inocentes e produziram catástrofez humanas indizíveis (embora Roma não tenha sido o seu comando directo), mas a nossa história e a nossa memória estão bem marcadas pelo brutalidade da Inquisição, abarcando poderosos e simples aldeãos, os países submetidos a um vasto mando sangrento, entre redes de culpadores e falsos culpados.
Mas demos a voz a José Saramago, Nobel da literatura: «...sem a Bíblia seríamos outras pessoas. Provavelmente melhores». Citando o artigo de João Céu e Silva, do Diário de Notícias, Saramago terá endurecido a voz depois das peimeiras considerações: «Não percebo como é que a Bíblia se tornou guia espiritual. Está cheia de horrores, incestos, traições, carnificinas» O escritor considera que «Caim» «é uma espécie de insurreição em forma de livro». Um trabalho de reflexão para outros reflectirem através dele. O problema vale o esforço dos leitores, mas, pela minha parte, continuo a entender que a escrita de Saramago, ao disciplinar-se, carpinteirada por «nivelamento», não nos arranca a entrega como acontecia nessa obra excepcional que se chama «Levantados do chão». O tema (e os temas assim desencadeados) exigiriam, sem barbarismo, algo que nunca se parecesse com um relatório. Ou então o mais estrito dos relatórios. «Nós somos manipulados todos os dias. - declarou o escritor - Temos de lutar contra isso» O problema não questiona Deus, «até porque ele não existe». O problema estende-se às religiões, «porque não servem para aproximar as pessoas nem nunca serviram».
Perante a atitude da Igreja, um outro comentário: «O que me surpreende é a frivolidade dos senhores da Igreja. Não leram o livro e vieram logo, com insólita rapidez, derramar-se em opiniões e desqualificações. Como falta de seriedade intelectual, não se poderia esperar pior. Compreendo que tenham de ganhar o seu pão, mas não é necessário rebaixarem-se a este ponto». Os comentadores da igreja entenderam como ingénua a leitura que Saramago faz da Bíblia: e ele responde «abençoada ingenuidade que me permitiu ler o que lá está e não qualquer operação de prestidigitação, dessas em que a exegese é pródiga, forçando as palavras a dizerem apenas o que interessa à Igreja. Leio e falo sobre o que leio. Para mistificações não contem comigo».
São, de uma forma geral e segundo a sua estratégia, pertinentes estas observações. O pior é que Saramago não deixa de criar divagações que facilmente se prestam aos tais ditos de ingenuidade ou de falta de capacidade para aprofundar os mitos, a sua natureza, e o espaço que abriam ou fechavam nas suas épocas de contexto. No meu livro «A Culpa de Deus» senti o peso dessa experiência, mesmo quando transcrevi alguns salmos à letra. Mas quem medita e escreve sobre esta problemática tem de contar com a poeira e os véus dos milénios. O meu problema era levar um personagem de cultura pluridisciplinar a visitar, sob vários critétrios que guardava para si, os lugares onde, dizia ele, havia mais probabilidade de Deus te deixado alguns sinais -- justamente os lugares da miséria, do sofrimento, da morte adiada. Quem fizer este exercício nunca pode convocar a Bíblia sem desmontar a ausência de sentido ou de respostas após cada inútil mortandade, que papel teria ocupado «naqueles tempos» tão continuadas e absurdas narrativas, horas da obediência à morte dos filhos em nome dos deuses, épocas onde os erros do mero mimetismo acumulavam os mais assombrosos genocídios. Em «O Evangelho segundo Jesus Cristo», o escritor pouco mais realiza do que transformar, em memória da Bíblia e dos Evangelhos, um personagem do seu próprio desejo, na sua invenção de maravilhoso sobre uma estrutura trágica e dearticulada. E, no entanto, o tema dos Evangelhos, esse sim, candente, contém matéria para desmentir, para revelar paradoxos e contradições, aliás num campo onde a linguagem de Cristo é matéria de questionação e de comparação com tradições a montante. Os Evangelhos não revelam nada, não servem para nada, apesar de alguma da sua poética e de frases atribuídas a Cristo lembrarem uma possível teatralização beckettiana. Cristo diz, plácido e maquinal: «Levanta-te e anda». Lázaro, morto, obedeceu, todos viram. Beckett, em «À Espera de Godot», repete a ansiedade de um personagem que queria sair do lugar onde esperava por «Deus» eternamente, sem que ele atendesse ao compromisso. O amigo do personagem fóbico. a cada proposta de partir («Vamos embora») apenas responde: Não podemos, estamos à espera de Godot».
Todos nós, afinal, estamos ainda naquela situação, esperando um sentido onde não há sentido nenhum, impotentes para travar a geminação sangrenta do poder religioso com o poder político. Deus poderá mudar de nome, mas a manipulação é a mesma para a qual José Saramago chama a nossa desamparada atenção. E não vale a pena perguntar, como Hitler sobre Paris, «A Palestina já está a arder?» Os que se fazem explodir na praça pública, talvez na mais horrível e demagógica forma de combater, acreditam nos sinais de Deus, decoraram os textos sagrados e entregam-se ao martírio poque já não conseguem ver o real à sua volta, porventura outra mentira que nos vem do ser e do nada.


O Evangelho segundo Brueghel

quinta-feira, outubro 08, 2009

ARRUADAS E ARRUADORES, ENTRE ARRUFADAS

imagens a condizer, pouco inocentes

Acordei em plena campanha, esta como a outra, esta como as outras, tanto faz. Os protagonistas deliram nas arruadas, entre arruceiros, atacam figuras próximas, armadilham o terreno e negam já o próprio futuro. Qualquer dia recupera-se um presidente ou muda-se de presidente. Esta política (nacional) tem ainda a sua raiz na última Assembleia Constituinte, tempo depois, difícieis, as vozes dos capitães de Abril, na madrugada de 25, em 74, teslizando pela madrugada ao sinal do canto Vila Morena. Essa gesta, à medida que se institucionalizava, foi perdendo o tremendismo revolucionário do MFA, do COPCON, do Otelo-herói-da-democracia-directa, do PCP-com-Álvaro Cunhal, do PPD-Sá Carneiro, do CDS-Amaral-e-Freitas, do PS-de-Mário Soares, esses e muitos outros, quarenta partidos pelo menos, sem febras nem tinto, só com os cravos na mão durante a grande festa, nesse ano, do 1º de Maio.
Do fundo do velho baú, vieram outros símbolos, cito apenas Eufémia, Eufémia patrona dos clandestinos e dos desvalidos nas searas, alentejana longe, morta com um tiro e uma foice de veneração, esquerdas entre esquerdas, a Fonte Luminosa no golpe de virar páginas, intentonas e golpes reaccionários, os pequenos partidos tresmalhados nas colinas da glória vã, E o 25 de Novembro pela noite, em nome de uma qualquer reacção, crispações provisórias, crenças e novos amanhãs, tudo isso e muito mais que não passa de sumário, sem falar sequer no retorno das guerras de África ou no retorno e populações de Angola e Moçambique, um terror súbito na desnecessidade daquele fazer de conta que Portugal, após catorze anos de atraso, alinhava pelas vanguardas. Franz Fanon, amigo das descolonizações, pressentiu que o vão entre a pré-história e a contemporaneidade era vasto demais para súbitos actos de fé. Pela nossa parte, hoje, sabemos como foi pior a emenda do que o soneto.


já D.Carlos gravava assim

Mas a herança apolítica dessa parte da nossa história começa a parecer uma maratona semeada de obstáculos ilegítimos, bandeiras voando sobre os atletas, armadilhas angulares com os piores condimentos, pastas abertas com coligações e tratados soltos em lágrimas, alertas, palavras soezes, e uma perda lenta mas grave e alarmante e global dos valores, direitos, conquistas, culturas, representações da democracia, governos atrapalhados em contra-mão, Assembleia dos ritos e dos gritos, novos mitos, lugar da República que se perfila na pedra das melhores iniciações.
A derrocada do Capital minou o mundo inteiro, abriu as entranhas das maiores patifarias, e já todos se acomodam para arranjar a casa da mesma maneira, depois de limpar a água suja da cheia. Ninguém aprende a urgência de se começar a terraplanagem do planeta das cidades mamutianas, tumores em Metrópoles babélicas, contra os crescimentos a todo o custo e em nome de um Outro Projecto. Tal operação levará mais de um século, mas o minimalismo resultante não significa a súbita passagem à dieta mais rdaical e a mera dedicação a plantar flores, vivendo o grande povo só assim. Mas também não tem jeito, perante a fome no mundo, que se derramem niagaras de leite no asfalto e se congelem milhões de toneladas de manteiga só para protecção de certas fortunas. O mundo da chantagem e do insulto, na obscuridade das corrupções a fingir e a sério, arrebatou a nossa gente, deputados da Assembleia também, comentadores súbitos, como congumelos, intelectuais cheios de empáfia, à esquerda e à direita, televisões arreliadas cuja liberdade não reconhece aos outros o menor comentário público de desagravo, e assim por diante, ministros sob metralha, todos maus, todos erráticos, estes, os anteriores e os futuros, como nas autarquias e nos arranjos que atravessam, num fervilhar de plena impunidade a par de grandes exemplos de trabalho sensato e colectivo. Há quem agtrevesse as malhas da lei, só da lei, porque a douta justiça, apesar de algumas pitadas de modernidade, quase deixou de funcionar, presa sob os escombros da sua independência olímpica, da sua liturgia, através de processos com mais de cinquenat mil palavras atrasando alguma ideia informática para desencarcerar juizes e ajudantes, paquetes e ouvidores a fingir.


cada vez há mais árvores que não morrem de pé

Entretanto, o tempo das eleições é assim como a época das feiras e das vendas a retalho por baixo das mesas de pano. Os novos salvadores são os do BE, paradoxais, que não querem governar e lhes basta fazer diagnósticos devastadores, contra fortunas e humores. Há limites para tudo: se não quer governar, ou pelo penos ajudar, resigna, fala pelas ruas, na Polis. Assim se fazem as misturas explosivas, de antigos partidos, ou algum maçador coktail Molotov. Um dos adversários deste partido que retalha a política nacional em quadradinhos do exame por tomografia axial contputorizada, é naturalmente o PS, ali do centrão e pontas à esquerda, e agora há um verdadeiro inimigo de 21 deputados, terceira força do hemiciclo, gente de direita a espreitar numa esquina mais ampla, CDS-liderado-pelo-Portas (o Paulo do Indendente), agora andarilho de mercados e feiras e peixarias, pedalada apreciável, esforçadamente, mostrando ao povo o paladar das palavras e do seu artifício. Lá se vai o «rendimento de inserção», se o homem se alncandora no beiral da República, em troca de qualquer salmãozito cedido pelo governo minoritário do Sócrates, o Primeiro Ministro do novo paradigma «quanto mais porrada receber melhor». E deram-lhe com tudo o que tiveram à mão e até com o próprio Presidente da Repúblico. Antes de «negociar» com os partidos, que parecem cães devoradores de carne humana, alinhados, a ladrar, ao portão do novo orçamento, Sócrates deveria entrevistar o duce Berlusconi, um mestre na arte de transgredir e de bronzear toda a gente, ele mesmo, mas sem praia.
Entretanto, ouve-se um zum-zum sobre corporações ofendidas com a avançada do governo logo nas primeiras investidas. Mas quem é que sabe aturar as corporações? E a estratificação dos sindicatos com as suas casstes piratas? O Salazar, primeiro português por concurso público nacional, é que era corporativista, uma mentira como qualquer outra, que o digam os Tenreiros e os Mellos, para usar a pitoresca linguagem do PCP, agora herdado pelo Jerónimo sem caceteiros, última mas desciplinada força política da Assembleia, acantonada nas sedes, nos seus motes, nos seus montes, no Avante. Habituaram-se a esperar, mordendo numa dialéctica incapaz de competir com as cada vez mais escancaradas zarzuelas do Louçã. A moda não é o seu forte, no PCP, e lá na sua ideia de ordem ordeira, com palavras gravadas há cerca de cinquenta anos, nem sabem que a moda passa.
O PS, que se espalhara nas europeias, lá ganhou as legislativas, passando a capa ao PSD que já se aprestava para outro triunfo, sob o manto respeitoso da Senhora Ferreira Leite, poupada, pouco arruada, sabendo muito bem gerir os espaços em branco do seu esplendoroso programa. Nada disto tem sentido, porque esta gente já devia ter sido substituída e as regras apertadas, sem arruadores nem arruadas. Como é que se governa assim, aos pingos de uma palavra consensual por cada tarde? Mas eles estão todos nessa. O país passa-lhes ao lado. O PS, traumatizado de há pouco, inclusive pela própria maioria absoluta, já anunciou (ninguém ouviu nem acredita) que falará com todos os partidos a fim de preparar os métodos da governação. Há fadistas dos antigos e dos modernos por ali, o costume, e de resto o Partido, em vez de aceitar a onda do Fado Património Universal, ainda escolhe sobretudo melodias de filmes e de nada lhe serve ter bons faladores, porque os do outro lado da mesa há décadas que são os soberanos interruptores. O Pacheco repete palavras para interromper e acaba com os outros, num instante, abrupto, quadrado, circular e fiel indefectível ao PSD. Ajudou a nova (?) líder do Partido (dizem que social democrata), Dra Manuela Ferreira Leite, ex-ministra das Finanças e da Educação, de obra pouco apreciada e mostrando-se agora inimiga de muita gente, Sócrates como o pior de todos. Se tivesse ganho as eleições, mesmo em minoria, era certo e sabido que, sem ligar a ninguém, acamparia junto das micro, pequenas e médias empresas, o Portugal profundo que diz conhecer. A senhora é sintética e não parece ter pendor para as «arruadas». Aborrecera o Santana Lopes mas corrobora a sua candidatura à Câmara Municipal de Lisboa. De resto, pelo menos até Maio, tratará da sua sucessão com a voz de Rangel, penso eu de que, mas o rapaz é muito novo, embora avantajado e aguerrido, pessoa de oratórias e retóricas maldosamente falhando os alvos ou fazendo vítimas inocentes. Não é de tal palavreado que precisamos, pois o PREC não se repete, nem à esquerda nem à direita - pode é ser pior.


a política não é para competir em arruaça,
é
para implentar em harmonia a Polis

Que é que esta gente toda, tanta que não pode ser tanta, de resto cada vez mais incapaz de esboçar, para além do perde-ganha, começa a esboçar um gesto de bom senso, de partilha, sem tapar os olhos, sem disputa inútil, um gesto, enfim, de interesse por algum projecto (tão perto do apocalipse) susceptível de abrir caminhos modestos mas seguros em direcção aos lugares passíveis de sobrevivência?
E há quem diga que a «festa» está para durar, mais para o lado da Free-Port e dos Submarinos do que relativamente a pactos sérios para ordenar o país e as suas harmonias latentes. A seguir às autárquicas (onde ninguém ganhará, mais uma vez, porque não é disso que se trata) começará logo a ronda das presidenciais. Há muitas figuras reflectindo. E dizem que já está como certa a referencia histórica cujo nome de poeta é Manuel Alegre.
Depois disto, agora que já tenho setenta anos, vou empreender uma micro empresa com papel e lápis. O país requer esse esforço. Muito obrigado, senhor Primeiro Ministro, não preciso de nenhum crédito, mas espero continuar esquecido e pagar apenas o IRS.