sexta-feira, dezembro 31, 2010

GOSTO CEGO DA MODA OU LENDA DE AUSCHWITZ?


CARTAZ DA CAMPANHA DE CHOQUE CONTRA A DOENÇA
A MORTE DO MODELO ISABELLE CARO PODE SENSIBILIZAR
OUTRAS DOENTES SOFRENDO DE ANOREXIA
EM ANALOGIA COM A BULIMIA, MAIS LIGADA
A CAUSAS CULTURAIS, EM PARTICULAR AS DA MODA
A morte de Isabelle Caro alerta muita gente jovem para os arquétipos de beleza instituídos através da indústria do vestuário. Ela própria acabou por reagir na altura em que se viu num ponto de muita gravidade: era tarde, não havia retorno.
Isabelle Caro tornou-se um caso preocupante, em 2007, quando expôs o seu corpo esquelético num cartaz cujo contexto evoca a moda, procurando assim denunciar os efeitos da anorexia nervosa, doença que a fez entrar em coma no ano de 2006, quando pesava apenas 25 quilos. «Esta foto sem roupa nem maquilhagem não me favorece. A mensagem é forte: tenho psoríase, o peito descaído, um corpo de pessoa idosa».
Nas doenças do comportamento alimentar a percentagem de casos aumentou com as induções da padronização dos corpos magros como modelo de beleza. A anorexia nervosa é rara, tem uma prevalência de o,4 por cada mil, referiu há pouco tempo Daniel Sampaio. «Mais frequente entre as jovens é a bulimia nervosa, que afecta duas pessoas em cada mil.» A bulimia tem causas mais culturais, é menos influenciada pela genética, ligando-se com razoável nitidez às escolhas contextuais da moda, à sua mitologia de perfil neurótico, o que vai alargando as atitudes críticas a este mundo ao mesmo tempo risível e patético. Os desfiles em passerelle ganham um aspecto aterrador, de péssimo gosto, em nome de uma estética afinal falseada, com raparigas muito novas, desnutridas até ao absurdo, metendo os pés para dentro porque lhes ensinaram a andar sem desalinho, acabando por trocar frequentemente as pernas, perdendo a pose do tronco cuja ideia de gentileza mais se aproxima de uma caricatura dançante.
As modelos têm sido focadas mediaticamente por tais desempenhos, fruto de uma alimentação inaceitável. Quando morreu a manequim brasileira Ana Carolina Reston, em 2006, foram impostas regras, um pouco em todo o mundo, para definir o peso mínimo que as modelos deviam ter para entrar na profissão e participar nos desfiles. Ana Carolina Reston só comia tomates e maçãs. Aos 21 anos pesava 46 quilos.
Hoje, nos hospitais e Centros de Saúde, há mais vigilância para estes casos. O factor moda é confrontador com tal problemática. Como sempre, os grandes interesses de certos sectores industriais ou do espectáculo, onde a moda tem de ser rigorosamente incluída, contribuem amplamente para estes desacertos e efeitos de sub-culturas em torno do homem, da sua beleza e da realidade natural do seu corpo. O desenvolvimento de muitos destes «costureiros de luxo», de aparecimento eufemístico no fim dos desfiles, tem de ser controlado, quer na qualidade medonha do que por vezes fazem passar (não em venda, supõe muita gente) quer na saúde e boa estrutura física das modelos, gente jovem submetida a regimes de trabalho e conservação física fora dos óbvios direitos que lhes assiste na profissão. A liberdade de se suicidarem desta forma não corresponde a nenhum direito fundamental da pessoa humana.

quinta-feira, dezembro 23, 2010

LUTAS E ERROS NATURAIS GRITAM MAIS MORTES


desastres naturais

A Europa, após uma história onde grandes tragédias se produziram, gerando milhões de mortos e milhares de derrocadas do património construido, Dresden só ruínas e silencios no limite, foi reconstruída no século em que, por duas vezes, esteve à beira do abismo ou do suicídio. Foi no século passado, século XX, estranhamente uma das épocas em que as revoluções industriais e as descobertas tecnológicas chegaram mais longe, tendo o homem aflorado o vazio do espaço cósmico e viajado, várias vezes, até à Lua, que o homem pareceu capaz de representar o futuro e anunciar a utopia das emigrações entre mundos. Mas essa Europa, trazendo consigo a memória da reconstrução e os efeitos de novos arranjos sociais, entre a defesa de direitos naturais e a concepção de novas estruturas sócio-políticas, chegou ao século XXI como uma grande instalação comunitária, na perspectiva de criar um outro espaço de poder, dotado de moeda única, congregando a adesão de dezenas de países em torno do que parecia ser a coroação de uma ideia solidária, de uma partilha do bem estar e da gestão de recursos entre todos, reguladamente, respeitosamente, segundo tratados que evoluiram de fase em fase, até ao último nesta data, o tratado de Lisboa. A breve trecho, apesar da entrega de fundos aos países menos evoluídos, tendo em conta a consolidação de meios de produção e atributos circulando livremente nas trocas de todos os tipos, algo de demasiado coordenado, calibrado, cotado, entre limites disto e daquilo sem um verdadeiro aprofundamendo das virtualidades de cada região, história, cultura, criação de bens e processos de trabalho na qualidade, começou por ensombrar uma visão menos burocrática das coisas, alargou-se insidiosamente por sinais da ordem das tecnocracias. As regras vieram desabar um pouco por toda a parte, abstractamente ditadas de Bruxelas, coração da agora chamada União Europeia. A arquitectura de minúcias começou a obstruir países periféricos, como a Grécia, a Espanha, Portugal, a Irlanda enfim, com sintomas de que a pulverização económica e os desastres financeiros à escala planetária fazem parte de contaminações absurdas e de uma espécie de super-máfia que tudo pode influenciar, tudo pode distorcer, tudo pode infectar até um novo abismo cuja fractura absorvente é preciso a todo o custo evitar, invertendo as seduções que a uma espécie apocalipse vão conduzindo, sendo geradas pelos sistemas económicos enfeudados à volúpia do crescimento, da riqueza, do endividamento, de tudo, enfim, cuja natureza deveria ter sido sonhada ao contrário.

Se a imagem aqui reproduzida traduz um dos maiores desastres naturais, entre muitos outros que o próprio homem tem ajudado a convocar, outras vão surgindo, entre a fúria dos elementos e a disputa dos homens em torno de novos poderes e de novas grandezas um dia abaladas como o foram as Torres Gémeas ou a imensa fraude financeira expedida por Wall Street. A América vergou os joelhos, a esperança tão bem traduzida por Obama foi confrontada com todos os desesperos emergentes. Na Europa também, e pelos mesmos pecados, enquanto os maiores operadores da especulação de valores monetários se crisparam contra o euro, através das maiores fragilidades e poupando o poder nuclear que representam a Alemanha, a França, a Inglaterra. As assimetrias abriram fendas por todos os lados, o cataclismo lembra os outros, os naturais, que tantos milhões de mortos fizeram. Com uma orientação destas, assombrando as soberanias nacionais, os tecnocratas de Bruxelas, economistas sobretudo, não vão longe. As uniformidades que vergam regiões, países pequenos mas antigos e de culturas profundas, a um quadro sem metas proporcionais, são traçados que rasgam no mundo as maiores e mais perigosas assimetrias.

Parafraseando uma nota de Pacheco Pereira, direi como ele: «só há um mérito no actual impasse europeu, é as pessoas poderem perceber melhor uma realidade que já existia antes e que se negavam a admitir. Esta realidade é a das relações de força que levam a uma evolução da União Europeia para uma oligarquia, quase uma duarquia, europeia, que decide em função dos seus interesses nacionais e não de um ¨espírito europeu.¨
«A retórica europeísta parece ser hoje pouco mais do que uma muleta dos necessitados para que os salvem da situação de desespero. Mas, se as pessoas percebem melhor aquilo que no optimismo beato europeu não queriam ver, convinha que compreendessem também que o que vai acontecer é que os que precisam vão ficar cada vez mais federalistas e integracionistas, e os que não precsam cada ves mais nacionalistas. Ou seja: não ae aprendeu nada.»

sexta-feira, dezembro 17, 2010

OUT OF CONTEXT - FOR PINA | ALAIN PLATEL

imagens apresentasa pelo Público


Trata-se de uma peça grandiosa, onde o corpo refloresce a cada instante, composição cénica que nos mobiliza intensamente o olhar: algo que parece surgir-nos pela primeira vez, em estado de absoluta recepção: OUT OF CONTEXT-FOR PINA. É, de facto, um decisivo encontro cheio de reencontros e por eles as marcas de Pina Bausch. Ela dizia que a liberdade característica do seu movimento vinha do imenso trabalho que nele colocava. Esta ideia é, porventura, uma linha convocada para a peça aqui referida.
SObre esta obra, as palavras iniciais de Tiago Bartolomeu são justas e comoventes: «Com Out of Context -for Pina é um outro Alain Platel que se apresenta. Não há efeitps cenográficos vorazes, nem uma arqui-estrutura que esmaga. Não há sequer um fio que nos conduza. Mas há, como sempre, corpos que parecem vir de um outro mundo, e, por virem de longe, nos surpreendem com o modo como se relevam, intensos, presentes, inteiros. (...) São corpos praticamente nus, embrulhados em cobertores, que falam pouco; e, quando o fazem, citam ridículas canções de amor. São corpo mudos, ou quase mudos, que usam o movimento não como matéria para a acção, mas como a própria acção. E, por isso, mais do que corpos, são espectros que deanbulam num palco vazio, imersos numa paisagem sonora hipnotizante, à espera de nada. À espera de nós.
Esta obra pode parecer «fora de contexto», mas apenas porque se oferece a Pina Bausch e a relembra no ser, na inovação, naquela forma como Pina levava aos corpos a revelação de uma brisa, ou o prazer e o medo do corpo movendo-se sobre a chuva. «Alain Platel, 51 anos, coreógrafo que se reinventou depois de mais de vinte anos à procura de uma ordem para o seu movimento, fala-nos hoje de um lugar mais sereno, onde a urgência tem mais a ver com o presente do que com o futuro.
Segunda-feira, 20, em Lisboa, no Teatro Maria Matos

CARLOS PINTO COELHO, COMO FALAR DE CULTURA

foto publicada no Público
CARLOS PINTO COELHO (1944-2010) falecido anteontem, aos 66anos, com problema cardio-vascular a cuja intervenção cirúrgica não resistiu. Jornalista de mérito, apresentador de televisão, com uma forma singular de falar de cultura, distingiu-se particularmente com o programa ACONTECE, durante uma década, facto profissional que lhe conferiu grande visibiidade. Hiperactivo, o seu curríulo, exposto pelos jornais, dá bem a determinação com que trabalho. Foi, com um ano de idade, para Moçambique: viveu em Lourenço Marques até aos 19 anos, altura em que regressou a Portugal. José Nunes Martins disse dele: «Fica como um personagem luminoso na televisão portuguesa.

domingo, novembro 28, 2010

PERFORMANCE DOS MASSACRES CIRCUNSTANCIAIS

dos jornais
Cimeira da NATO, um dia ao acaso da rua, gente nova agregou-se num ponto de Lisboa, ao Chiado, e fingiu morrer num massacre que algumas vozes, falando para o mundo, atribuíram a uma acção militar daquele organismo do tempo da Guerra Fria. Esta gente tem, pelo menos, memória de filmes e notícias visuais de situações destas, porque a representação performativa foi momentaneamente convincente. Os protagonistas, por certo, nasceram quase todos muito tarde para saber do que falavam, exprimimdo à porta de casa que não aconteceram ou nunca foram assim. Fora da história, alheios aos verdadeiros massacres, estes jovens podem tornar a catarse apenas em mimetismo lúdico, efectivamente descomprometido.
Nada me liga especialmente ao estudo sobre a NATO, mas fui do tempo em que esse organismo se constituíu e acompanhei sempre os factos e reuniões que se lhe referiram. A organização para defesa do Atlântico Norte fez parte, até há pouco, do medo mútuo do Bloco de Leste e dos Estados Unidos da América: as suas restrições envolviam fronteiras geoestratégicas cujo sentido se perdeu ao cair o Muro de Berlim, sobretudo à medida que a Rússia enveredava por um modelo de regime aceitante dos mercados e de muitas das heresias capitalistas. Conservar a mesma designação, porventura com a mesma estrutura militar, em princípios e equipamento, parece mais um acto de sobrevivência de certa força pronta para se gerir em expansão do que uma cordial adaptação do mundo entre a América e a Rússia, geografia política cujo verdadeiro fim lembra forças emergentes mais a leste, poderosas, competitivas, talvez um dia invasoras - China e Índia, entre outras. Mas a Nato quase nunca exerceu grande prestação guerreira, chegando a ajudar trabalho de protecção a operações humanitárias. Combate agora, apoiada, esse sector de terríveis noções sobre o ser e a vida, os talibãs, no Afeganistâo, cujo desenvolvimento atroador terá efeitos sobretudo nefastos em toda a região.
Para os que fingem morrer no chão de uma cidade pacífica, sob o peso do avanço da Nato, o que é legítimo em termos de liberdade de expressão, seria talvez oportuno lembrar os que têm morrido em nome da paz, combatentes ligados à saúde, apoio em alimentação, jornalistas que escrevem e fotografam para se fazer a História concreta, sem véus de fantasia nem bandeiras longínquas.

UM ACIDENTE DE CAMPANHA, ROSTO DE PAPEL


Achei há dias, num jornal sem data, este rosto transtornado pela queda de um olho, rosto rasgado num qualquer acidente do passado ou do futuro, grandeza poetica talvez ameaçada, o olho pendido a pressentir o mundo ao contrário. Este género de imagens ainda funcionam para nós como sinais de perigos ainda sem nome, se esperamos o incerto amanhã que está por surgir; mas podem também apontar para a história, a montante, fugas, exílios, um golpe falhado de catana. Se o poeta, político transitório, ainda se tem como poeta, pensemos que ele volte a cantar arrebatamentos de Portugal.

quarta-feira, novembro 24, 2010

PARA O IMAGINÁRIO DE JOANA VASCONCELOS

Muito espantados andam os portugueses medianamente cultos com uma jovem artista plástica portuguesa, Joana Vasconcelos. Porque se trata, na verdade, de alguém que, em poucos anos, explorando um imaginário rico e bizarro, usando adereços industriais, tampões, pentes e outros objectos/materiais desse tipo, constrói (com uma autêntica indústria caseira) faustosas peças que competem com o sonho jurácico, lustres de tampões, piscinas com a forma das nossas fronteiras, sapatos de salto alto e revestidos por tampas de panela, qualquer coisa do tamanho de um automóvel.
Acontece que descobrimos o uso dos mais diversos preservativos, no tamanho e na cor, enrolados ou desenrolados, unidos uns aos outros, ou sobrepostas ao jeito de certas flores, tudo à chinesa e a favor da moda. Os que viram este espectáculo disseram mesmo que a moda habitualmente proposta nas passerelles, em cima de esqueletos execráveis, fica muito longe desta pujança e deste convite ao prazer (do visual aos outros). Joana Vasconcellos não foi ainda ultrapassada: estes objectos, além de nos preservarem das doenças sexualmente transmissíveis, como salienta o Papa, acedendo ao seu uso, podem manipular-se consoante a vontade expressiva que nos acometa, fazendo deles balões e balõezinhos, atados ou não uns aos outros, flutuando na piscina pedagógica (Portugal metendo água), ou prontos para exportação e com instruções. Sabe-se que as melhores marcas, além do ar, aguentam cinco litros de água. Mil preservativos mais ou menos cheios de líquidos mais ou menos coloridos, atados como um grande astro e dinamitados para uma hora zero em pleno Tejo, eis o lado efémero, performativo, que poderá (assim ou de outra maneira) ser apurado por Joana. Até porque se trata de coisa bem didáctica. Um amigo nosso lembrou que os mesmos preservativos, talvez 2 ou 3 mil, mais ou menos cheios de um gaz leve, formariam no espaço o efeito de grande e espantoso OVNI, o maior jamais visto. Spielberg podia ser convidado para o evento e convidado a transfigurar a máquina de «Encontros do Terceiro Grau».

alguém pensou que esta rapariguinha seria capaz
de um tão elegante e imaculado aparecimento?

Um dos mais susgetivos bazar da moda,
da arte pós-pop, erótico e floral

quarta-feira, novembro 10, 2010

DOIS ESCRITORES LUSÓFONOS BEM DIFERENTES

Nia Couto, Moçambique, as palavras transitivas

A propósito de alguns livros, de relações e confrontos entre elites de Angola e Moçambique, abordo hoje, sumariamente, duas figuras que desde há anos (Mia Couto há mais) são convocadas por universidades e outras instituições portuguesas. O escritor moçambicano, que nasceu a 5 de Julho de 1955, na Beira, pertence a um género literário ligado ao realismo mágico e à ficção histórica. Ostenta a nacionalidade moçambicana mas é natural que tenha também a portuguesa: é filho de pais portugueses e visita Portugal, onde campeia em diversas actividades culturais, com sensível assiduidade. A sua veia poética, aos catorze anos de idade, já transitara para o jornal Notícias de Beira. Mudou-se em 1971 para Lourenço Marques, iniciando estudos em medicina, embora tenha abandnado essa área e haja enveredado pelo jornalismo. Trabalhou no jornal Tribuna. Agiu pela independência da Província, sobretudo através da Agência de Informações de Moçambique, formando ligações de correpondentes entre distritos durante o tempo da guerra de libertação. Foi director da revista Tempo até 1981, passou para o jornal Notícias e aís se manteve até 1985, altura em que já publicara o seu primeiro livro de poemas, Raiz de Orvalho. Contrariando a propaganda marxista militante, demitiu-se de director do jornal a dim de continuar os estudos universitários na área de biologia.

O seu desenvolvimente como escritor tem neste percurso bases de forte interesse. É considerado um dos mais importantes escritores de Moçambique e bebe, em Portugal, apoios de Fundações e Universidades para melhor girar além fronteiras. Tem sido, assim, muito traduzido; e em muitas das suas obras tenta recriar a língua portuguesa com uma influência moçambicana, utilizando o léxico de várias regiões do país e produzindo um novo modelo de narrativa africana. As palavras inventadas nem sempre se baseiam em lexicos locais, mas o seu «abuso» de tal efeito contrinuiu em muito para o êxito alcançado e para a protecção obtida nas editoras. A sua obra já é vasta, sobretudo novelas e contos, mas falta-lhe chegar a um trabalho de maior fôlego, por via das qualidades da nossa língua e exprimindo a grandeza (a paisagem humana e do trabalho) na dimensão alargada do tempo lento e precioso vivido entre afectos e também numa perspectiva antropológica. 1
______________________________
1 Aspectos colhidos na Wikipédia e integrantes de uma análise crítica sobre o autor.

UM PENSADOR ANGOLANO

Ruy Duarte de Carvalho

Ruy Duarte de Carvalho, escritor emérito, cineasta, escultor e antropólogo angolano, foi encontrado morte na sua residêmcia na Namíbia, como tivemos oportunidade de salientar aqui, em Agosto passado. Tinha apenas 69 anos. Nascera em 1941, Santarém, Portugal e passou a infância em Angola e na Namíbia, onde viria morar anos depois. Retornou a Santarém aos dezanove anos para ingressar no curso técnico em agropecuária. O seu primeiro livro surgiu em 72, intitulado, Chão de Oferta. São poesias marcadas por temáticas portuguesas e africanas.
Optou pela nacionalidade angolana em 1983, depois de muitos anos de trabalho no sector do desenvolvimento agrícola. Morou também algum tempo em Moçambique e, depois de terminar o doutoramento em antropologia na École des Hautes Études de Sciences Sociales, em Paris, assumiu a docência na universidade de Luanda.
Ruy foi considerado pela crítica como um importante nome da literatura portuguesa, assim representando uma síntese do mundo lusófon, não apenas pela sua bografia, mas também pela dedicação às temáticas desse idioma. Muitos pontos da cultura erudita referiram a importância do autor.O esforço de unir antropologia e literatura levou Roy Duarte de Carvalho a um verdadeiro trabalho de se livrar do academismo que porcura opor as duas áreas. Os seus trabalhos antropológicos de natureza mais reflexiva, a par dos seus textos de ficção, encontram-se num mesmo ponto de vista, perspectiva de um observador assumidamente não neutro. O seu olhar para a literatura e para a antropologia exige do autor uma reflexão sobre si próprio e sobre esse mesmo olhar -- o que legitima uma observação conscientemente parcial e não por isso menor.
Nesta perspectiva, a literatura que pratica, cerca de 15 livros, pouco ou nada se pode comparar com a do moçambicano Mia Couto. O seu admirável estudo sobre os Kuvale, povo que vive no sudoeste de Angola, foi publicado em 1999 sob o título Vou lá visitar pastores. Entretanto a produção cinematográfica deste cientista e poeta (documentário e ficção) revela a intensidade do olhar que dirigia à pessoa humana, aos problemas sociais. São bons exemplos Nelisita: narrativas nyaneka (1982) e Moía: o recado das ilhas (1989). Documentários de longa metragem que se contrapõem às narrativas antropológicas e cinematográficas, tudo fazendo parte de um universo de observação empírica sem perda da autocrítica, atitude ética que o autor relevou da sua concepção do mundo.
A sua escrita trespassa os conteúdos propriamente discorridos por ter em comum o facto de reflectir sobre si, autor e autor social, não apenas sob a condição de escritor, também na perspectiva de um modo particular de ser e observar. Aliás, em Ruy Duarte, como noutros escritores de orientações semelhantes, há um fôlego (tempo, espaço, substância), a literatura não se basta enquato forma de observar o mundo, reflecte-se a si mesma e aos actos da formação da escrita.

quarta-feira, novembro 03, 2010

DIA DE NASCER E DE MORRER: CARLOS AMADO

escultor Carlos Amado

A morte do escultor e professor Carlos Amado é noticiada no «Diário de Notícias» sob o título «Um escultor que conciliou modernidade com tradição», juizo talvez um pouco subjectivo mas susceptível de ser avaliado sobretudo nas concepções do artista sobre a vida, sobre a própria natureza do ser humano, da cultura e do ensino seperior das artes. Carlos Amado, longamente companheiro e admirador do professor Lagoa Henriques, a quem foi dedicado até ao fim, homenageando-o há pouco tempo com uma espécie de resgate da escultura poética do Mestre, desenho, obra pública, comunicação audio-visual, as coisas e os lugares de um homem de facto invulgar na sua saudação à vida. Com alguma modéstia, Amado seguiu de perto o emigo e trabalhou muito em ajudas logísticas e outras.
Carlos Amado foi discípulo do escultor Salvador Barata-Feyo, de Lagoa Henriques e de Joaquim Correia. Não tem uma obra escultórica muito extensa, mas não foi displicente nos estudos que desenvolveu, sobretudo enquanto professor na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Faleceu na segunda-feira, na Ericeira, onde comemorava os seus 74 anos. O Director da Faculdade de Belas Artes, Luis Jorge Gonçalves, teceu ao colega elogios em torno do seu empenho e da forma como marcou, em certos pontos, aquela Escola, cuja história, desde o 25 de Abril de 1974, muitos de nós ajudaram a reformar, actualizar e integrar-se na Universidade, como Faculdade de Belas Artes, numa deriva de sacrifícios, perdas e debate com os sucessivos governos durante cerca 13 anos consecutivos.
Carmos Amado nasceu em Carcavelos a 1 de Novembro de 1936. Foi professor de desenho, escultura e museologia na ex-Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e na actual Faculdade. Ainda activo, tinha agendada uma palestra na Academia Nacional de Belas Artes sobre o restauro de obras de pintura na I República, por Luciano Freire, e de escultura, monumentos e palácios nacionais.

segunda-feira, novembro 01, 2010

O BELO ENGANO EM MISTÉRIOS DE LISBOA

um filme sobre um romance não é a narrativa
integral dessa obra literária

Para ver cinema hoje, em Portugal e em português, é preciso fazer um seguro contra todos os percalços, surdez, publicidade, claustrofobia, além de ganhar um elevado sentido de precaução acerca do que os críticos ou colunistas de circunstância dizem das obras (nacionais) tão pouco distribuídas, sequestradas pelos monopólios da respectiva indústria de comprar para reter e censurar. Alguns filmes de autores portugueses, sem contar com Manuel de Oliveira, «emigram» logo que nascem, vendidos ao estrangeiro e mercantilizados através de prémios, pequenos prémios e citações autenticadas das agências internacionais. Quanto à opinião dos nossos opinidadores, tal é a sua vanidade contraditória, deve ser comparada com a obra de António Areal, «Dramática História de um Ovo» estrelado. A partir das duas estrelas, comecemos a desconfiar, a fritura pode estar contaminada pelos francesismos de outrora. No caso das duas estrelas, devemos pedir estudos de opinião a verdadeiros conhecedores, obscuros cidadãos que ainda gostam de Ucello e veneram Tarkoski ou Orson Wells. Mas tais criaturas são referências obsoletas, dirão outras criaturas que bebem Coca-cola. O pior é que, tanto no cinema como na literatura ou na pintura, não podemos alienar esses exemplos. Ninguém se lembra de riscar a azul Tolstoi nem de retirar da história do cinema um Eisenstein. Depois é preciso saber que o cinema é uma arte autónoma e capaz das mais completas sínteses pelos meios que opera: da luz à cor, do claro-escuro à profundidade de campo, do movimento ao ritmo e à cadência quase quotidiana da urdidura a que se chama montagem, do ponto de vista em termos de percepção ao ponto de vista enquanto conceito sobre o visível, entre evidências e significativas obscuridades, tudo isso, aliás, em apresentação do espaço e do tempo, sob sonoridades do real, na voz e nos murmúrios, na tradução de ventos ou brisas, por vezes acelerando as emoções produzidas com o adequado recurso à música, sem esquecer que muitas vezes reiventa a pintura, a fotografia, as dores e as alegrias das mais empenhadas captações das guernicas eternizadas pela história, viagem dos povos, carnificinas e outras temáticas do mundo e da vida, a espera juvenil de um amor ou essa «luz de inverno» que antecede a morte.

Vejamos o belo engano do filme «Mistérios de Lisboa», obra em dois grandos actos, homóloga daquele livro de Camilo Castelo Branco e realizada faustosamente por Raoul Ruiz. Pode ler-se Camilo como se viajássemos por um folhetim do século XIX, embora o escritor tenha a potencialidade de abertura à palavra e se empenhe na criação de atmosferas que o tempo absorvia como nas antecipações das dores românticas impossíveis. Manuel Halpern, no JL, chama a nossa atenção, a propósito daquele filme, para as «novelas publicadas em jornais, cheias de intrigas, histórias de faca e alguidar, escândalos, paixões assolapadas, crimes e tragédias», traçando pouco depois uma ligação de modo/moda à obra «Mistérios de Paris», de Eugene Sue, e voltando a Raoul, importante realizador europeu de origem chilena, cuja carreira tem melhores recortes e profundidade. Em todo o caso, saudando o esforço do produtor Paulo Branco, Halpern aponta ( e é consistente no que diz) que «nunca se viu nada assim no cinema português. Uma irrepreensível reconstituição de época com 266 minutos, uma notável competência técnica, um elenco extenso, um guarda-roupa apurado, um grande realizador estrangeiro.» Infelizmente, a grandeza física do filme não basta para resolver o problema apontado por Raoul: o livro parece quase lido na íntegra, pedra sobre pedra, e o filme desgasta-se quanto mais o tenta. A primeira parte seria fácil de finalizar e teria uma coerência formal quase completa. Na segundo parte, e é bom dizê-lo, a linha formal altera-se, a ideia de folhetim dilata-se, o medonho comprimento de cada coisa descrita e redita pela imagem, tudo falado em francês (aliás bem) não passa afinal de um outro filme, aceno ao mercado internacional e porventura a tentativa de premiar os altos favores da produção. Há certas áreas de mais incisiva qualidade: a excelente fotografia, acenando à pintura e ao profundo sentido dos espaços naturais ou arquitectónicos, tratada através de uma luz lendária, de um efeito de distância, acolhendo de forma notória a composição dos elementos do plano, personagens, adereços, sombra/luz, legibilidade.

A regência dos planos é um dos mais brilhantes aspectos da realização da obra: a câmara é um dos fortes factores da realização conceptual do filme, ela inventa prodigiosos olhares de grande amplitude de concentração, abarcando sinais determinantes sobre o que vai acontecer; começa a rodar circularmente em travelling e circunda a cena e as falas, permitindo desvendamentos invulgares do próprio significado romanesco, tanto do lugar como do clima intimista de certas retomas. E tudo continua a resolver-se dessa forma, não bem por panorâmicas, mas quase sempre por travellings -- em frente, atrás, para cima e na perpendicular, entre contrapontos dos planos picados, cuja zona próxima se povoa de entidades ou presenças objectuais desfocadas, através das quais se descortinam (em pleno foco) coisas e certa gente. Tudo isto segundo uma geometria clássica, dentro de alguma virtude renascentista, ou ligada aos roteiros em espiral, de expressão frondosa mas contida. Este método de encenação entre planos, cenas, sequências, incluindo a colagem, o ir e vir de quem vê e significa, passa por um constante distaciamento quanto aos quadros vivos do que está acontecendo, chega ao plano médio e fixa-se, nunca chega verdadeiramente ao enquadramento muito aproximado de coisas e sobretudo rostos. O espectador é assim conduzido a fluir sempre, mas como quem espreita diversas cenas, nas quais figuram pessoas que nunca consegue conhecer verdadeiramente. É um critério em ordem à homogeneidade, não uma virtude, em especial quando a dor transforma a alma e a face de gente suspensa do destino.

O som: a banda sonora referente à música acompanha, por vezes como nos momentos do grande cinema, a maior parte de tudo o que é preciso fazer pulsar, novamente em murmúrio, outra vez carregando a densidade dos próprios movimentos de câmara. Muitas cenas passadas nos salões da aristocracia emplumada e fútil, beneficiando (ou não) do olho sempre a circular, espectador voyant, que acompanha o que de facto ganha visbilidade, tudo parece acontecer no silêncio em redor, além dos poucos que falam, explíctos de intriga e devaneio: o tal silêncio em redor é cumplíce do «segredo», sublinha o «mistério», facto relevante da forma escolhida por Ruiz e que talvez falhe frequentemente pelo não tratamento do meio tom contra um rumor indistindo na sala.

Actores: é um caso particularmente interessante, não porque tudo esteja bem entrosado em correntes de frases ou falas, mas porque as marcas das personagens, no plano representativo da fala, dependem de uma identidade que parece inalterável, de uma pronúncia quase a roçar a voz branca. Porque tudo acontece além e não aqui, perto de nós, naturalmente. Se os personagens sofrem mutações de enredo, em termos de redenção, digamos assim, isso é história trabalhada a meio do corredor ou junto a porta inacessível de um salão, sob o peso grave de altas pinturas murais. São opções que têm um sentido formal e estético, uma significação própria, tudo apurado com extrema competência. Mas se a competência exceder o lado plausível de um sorriso ou de um rosto em lágrimas, a questão pode dar que pensar. E no belo filme de Ruiz dá, com toda a certeza, nem sempre numa roda de consensos. Seja como for, notável é o trabalho de Adriano Luz (padre Dinis no filme). Os actores acertam na meia tinta da atmosfera descarregada à sua volta, deslizam numa obediência ao mesmo fado que também trabalha a metamorfose, o dos personagens que se refazem em diferentes fatos/factos, tendo por isso o encargo mais difícil, uma estranha riqueza interior, um lado de inverosimilhança que teria sido bom ter sido mais espreitado em toda a obra, mesmo correndo ao lado ou para além de Camilo.

Off: o recurso à voz off era quase inevitável numa opção destas. E não é bom nem acontece para bem do filme, embora possa recobrir a narrativa de tanto caso. Esta solução, assaz muitas vezes a arranhar o pefil das coisas e das pessoas, poderá ser útil ao folhetim, não é com certeza tão harmónica como o entendimento da sonoridade musical da paisagem.

Segunda parte: é um delírio de estradas coladas umas às outras, bem desenhado na sua própria monotonia, encostado a uma câmara menos versátil e todo oferecido a algum mecenas francês. São actores portuguseses, com excepções curtas, que se encarregam (bem) deste fardo que acrescenta desnecessariamente mais duas horas e meia às duas da primeira parte. Não me apetece comentar. Gostava de ver Raoul Ruiz, com tão pouco dinheiro como Fernando Lopes, inventar um filme a partir da obra literária «Uma Abela na Chuva».

Adriano Luz e Maria João Bastos



Actores belíssimos que as telenovelas devoram e os filmes «para toda a gente» compromete. Haverá ainda vida que nos possa legar um cinema português sem os vícios da indústria e dos pecados de vassalagem à ignorância, aos devaneios cosmopolitas da criação redutora?

sábado, outubro 16, 2010

OS HOMENS QUE DISPENSARAM SER HERÓIS

Miguel Sousa Tavares

No Expresso de hoje, 16 de Outubro, Miguel Sousa Tavares escreve sobre os resgatados mineiros do Chile:

«O Chile deu uma lição ao mundo e soube aproveitá-la, com planeamento e sabedoria. Durante 24 horas, milhões de pessoas, da China à Patagónia, tornaram-se fisicamente familiares daquele quarteto que, mais ainda do que os mineiros, ocupou a boca de cena o tempo todo: o Presidente Sebastián Piñera e a sua primeira dama, o cinematográfico ministro das Minas, uma espécie de António Mendonça austral, e a já-não-muito-jovem loira das relações públicas (...) Piñera aproveitou cada minuto de transmissão para efeitos de propaganda interna e externa. Ignorou ostensivamente o contributo da NASA para a construção da Fénix e não só, o papel determinante do americano chamado à pressa do Afeganistão para manobrar a perfuradora que chegou ao abrigo (...)
Nada, porém, teria funcionado se não fosse a extraordinária lição dada pelos mineiros, eles próprios. Dezassete dias sem comunicação com o exterior, sem poder dizer que estavam vivos, sem saber se os procuravam ainda e racionando a comida que dava apenas para dois dias. Um líder assumido desde o início, um chefe de turno que, não só não fugiu às responsabilidades, como se impôs para assumi-las. E uma capacidade de resistência, uma vontade e determinação exemplarmente patentes no texto da mensagem enviada para cima, ao fim de dezassete dias, agrafada à sonda que, enfim, os descobriu: "1. estamos todos bem no refúgio. 2. somos 33". Repare-se: nenhum apelo desesperado ("salvem-nos"), nenhuma queixa inútil ("não temos comida, as condições são terríveis"), nada. Apenas o que interessava saber cá em cima. A partir daí, esperaram, confiaram, prepararam-se para a hora do resgate e fizeram questão de sair barbeados, limpos, calmos, dignos: nada de sair como mártires, sujos, miseráveis, a apelar ao sentimento e à desgraça. Essa foi a grande lição: os grandes momentos exigem grandes homens»

ARTE COMO ESTATUTO SOCIAL E VERTIGEM

Leonor Nazaré

Num recente programa de televisão dedicado à situação do ensino artístico em Portugal, com a colaboração da Sociedade Nacional de Belas Artes e algumas personalidades do contexto,ouvimos coisas bem interessantes e a confirmação de que os governos que nos governam têm vindo a contrair a presença da Educação Visual, as bases do ensino artístico até ao 12º ano, bem como o valor formativo, em termos gerais pluridisciplinares.
Falando com os críticos e curadores, a coordenadora do programa, entrevistou brevemente Leonor Nazaré, do CAM, e por ela ficámos também informados de que o peso das instituições de prestígio, Gulbenkian, Culturgest, Serralves, é determinante para o sucesso de muitos artistas mais ou menos dotados. Os jovens sim, porque já não se praticam actualizações sobre o que estão a fazer os mais velhos (dotados de obra séria), e nenhum artista hoje pode dar-se ao luxo de não tratar, com os meios inerentes ao meio, do seu próprio marketing. Mais: as instituições vocacionadas para o serviço público, como as que citámos, têm todo o direito de enveredar por uma tendência, estudando-a e propondo-a com prioridade cultural. Mas a Leonor está enganada, no seu plinto dourado: são essas organizações as que mais têm o dever de formar públicos, de ser plurais na qualidade e na publicação pedagógicas das artes em geral. Grupinhos de curadores, sedentes de voltar a dividir (para reinar?) aquilo que é aberto e indivisível nas suas semelhanças e diferenças, disso já vimos as consequências, lutas, razões cegas, injustiças.
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Leonel Moura

Leonel Moura, artista plural, incisivo e por vezes impertinente com aqueles que não saúdam a sua intocável razão, tem feito percursos interessantes nas artes plásticas, desde a bad painting à recente exploração da robótica. Não sendo uma descoberta isolada, esse trabalho com robots, ele aprofundou variantes e criou uma realidade sua, apelativa, que produz efeitos (não bem resultados) de grande interesse visual e susceptíveis de alcançarem melhores performances.
Também entrevistado naquele programa, Leonel Moura, como habitualmente, falou em geral de instituições ligadas ao ensino artístico e da sua dificuldade na procura dos acompanhamentos das rápidas mudanças dos novos paradigmas neste domínio. Paradigma, para tudo e todos, eis a questão. Mas sim, as escolas e outras instituições ligadas às artes devem acompanhar os novos valores, novos métodos e novas tecnologias. Os computadores são uma ferramenta de eleição, mas a massificação da sua presença tem perigos evidentes. É verdade, contudo, que o próprio computador pode fazer de pincel, pode criar formas e figuras inusitadas. Eu próprio já apresentei experiências desse tipo, com obras inteiramente trabalhadas através do computador enquanto ferramenta principal. Mas isso, num campo não dogmático como a arte, não tem nada a ver com instrumentos obsoletos ou de última geração. Pode trabalhar-se com pincéis, rolos e ferros de soldar. E com as mais invulgares matérias sustentáveis. O que é lamentável é a afirmação peremptória, e destituída de qualquer verdade estético-funcional, com que Leonel Moura mimoseou os telespectadores. «A Arte tem de acompanhar a velocidade das transformações técnicas e de conteúdo da criação artística no presente. Um pincel, por exemplo, é já, sem dúvida, um instrument o obsoleto».
Um pincel é um instrumento como qualquer outro. E se hoje usamos o machado de aço e madeira para cortar certos materiais, isso deve-se ao fascinante património que bem conhecemos -- o coup de point. Magritte representou mimeticamente um cachimbo e legendou esse trabalho da seguinte forma: Isto não é um cachimbo. Hoje podemos fazer o mesmo com a representação de um pincel (isto não é um pincel) e trabalhar com ele logo a seguir: a grande capacidade do homem em recorrer a ferramentas inesperadas ou antigas, torna os aparelhos obsoletos paralelos a um bisturi electrónico.

domingo, outubro 10, 2010

BREVE, A MORTE, ENTRE O LUGAR E O TEMPO

o lugar
Todos os dias passo neste lugar, numa rua mortiça do bairro onde vivo. Passo por aqui e sei que este velho maple, abandonado pelos donos como traste velho e usado pelos pedreiros de uma obra ali à esquina como travamento do trânsito, tem sido conservado no tempo, há largos meses, já sem serventia mas suscitando eventuais encenações do quotidiano.
Perguntei ao vizinho:
«Que raio, então esta tralha vai ficar aqui para sempre?»
E ele:
«A Câmara só tem um giro, de mês e mês, para recolha de coisas assim».
«E acha bem?»
Ele levantou, de espanto, as fartas sobrancelhas:
«Essa é boa, eu não pertenço à Câmara, vizinho».
«Tem, razão, desculpe. É que isto brada aos céus».
«O responsável por isso já lá está, no céu».
«Que ideia é essa?»
«Oiça, oiça: há cerca de duas semanas sentou-se ali um pobre trolha, meio tonto do vinho, que trazia na mão apenas aquelas pedras na lata. Pousou a lata e fez um cigarro. Fumou, tossindo, durante algum tempo. Depois, aparentemente sem forças, deixou-se ficar a olhar para os carros que passavam ali, devagar. Em breve estava a dormir, até o chapéu caíu para o lado. Ninguém lhe tocou, ninguém procurou acordá-lo. Há casos assim, de respeito, de compaixão».
Eu percebi a história mas não a persistência do maple naquele lugar impróprio. Mas o vizinho tinha resposta para isso, aliás igualmente estranha:
«O homem ficou ali toda a noite, sempre na mesma posição reclinada. De manhã, os transeuntes que o haviam visto na tarde da véspera, procuraram saber se o homem precisava de auxílio. E tudo se passou um ápice».
«Tudo o quê?»
«A descoberta (em alarido) de que o desgraçado estava morto».
«Estava morto?»
«Exactamente».
«E depois?»
«Depois foi um ajuntamento de pessoas, a espera durante cinco horas pelo delegado de saúde, e por fim a remoção do cadáver para a morgue.»
Eu disse apenas, para me redimir:
«Que tragédia...»
Logo me lembrei de outra coisa:
«Mas isso não desculpa o facto de não terem removida o maple.»
O vizinho sorriu, meio desolado:
«Muitas pessoas que vivem aqui perto e acompanharam o acontecimento, incluindo a absurda espera pelo delegado de saúde, impediram o piquete camarário de retirar o objecto».
«Porquê?»
«Eles apenas disseram que, se as autoridades tinham o seu tempo para cumprir a lei, eles também reivindicavam a permanência do maple no mesmo lugar, pois assim poderiam exprimir todo o seu tempo de nojo, em memória da vítima.»
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o mesmo objecto serve duas histórias diferentes
mas de reflexão idêntica, aqui e no blog contrupintar02

quinta-feira, outubro 07, 2010

REPÚBLICA PORTUGUESA, CEM ANOS E DOIS DIAS

ilustração alusiva à proclamação da República Portuguesa



Foram vontades e sonhos, a revolta contra o abismo, algumas consciências visionárias. Portugal mudou de regime com a proclamação da República a 5 de Outubro de 1910. A comemoração dos cem anos da República propriamente dita decorreu há dois dias, mas as ressonâncias foram de molde a cuidar ainda do facto, passando apenas alguns sinais dessa história conturbada e fascinante.
A primeira acção da I República que se colou aos meus olhos e ao meu espírito, além das conversas ouvidas durante a infância, foi o cuidado havido em instaurar um verdadeiro ensino artístico, embrião de um tipo de cultura que é inerente à realidade da civilização. Quando ingressei na ex-Escola de Belas Artes (depois superior, depois integrada, como faculdade, na Universidade de Lisboa) começei a perceber a história deste ensino maldito, sempre na rectaguarda do que se foi fazendo na Europa. Mas os republicanos, vivendo uma revolução complexa, entre golpes e governos de poucos meses, institui aquele ensino em 1911, um ano apenas depois do seu começo. Mal ou bem, com mestres de academias e frouxa modernidade, a verdade é que o conceito integrava uma visão própria de progresso. E, apesar das várias e tímidas transformações das Escolas de Belas Artes, atrás só nomeadas, a verdade é que um novo regime demonstra uma nova ideia ao fim de um ano. E essa ideia, defeituosamente instalada pela elites do tempo, acumulou atrasos e mais erros, tendo chegado ao seu verdadeiro nível ao fim de um tempo de cobardia de cerca de 90 anos. A própria democracia proporcionada pelo 25 de Abril de 1974 (e esta já é uma generalização incerta) só criou condições para fazer avançar o ensino superior artístico 13 anos depois das primeiras comissões da Escola terem feito chegar ao parlamento e aos governos para lhes lembrar o que, neste âmbito, já deviam ao país e à sua substância ce cultura e civilização. Ninguém percebia o que era isso, os artistas foram transitoriamente declarados como desnecessários, e um posterior acaso de pessoas e de certas circunstâncias permitiu abrir a tal luz ao fundo do tunel, entre vários meses de trabalho de uma Comissão providencial. Os governantes (em Portugal) demonstraram quase sempre, nessa época, uma enorme desactualização sobre as questões da cultura, realidade que não permitiu a criação de um espírito nacional aí ancorado, sede da abertura ao futuro -- como bem compreenderam os republicanos de 1911.

Não vou reiterar, noutros campos a comemoração deste centenário, porque isso está feito e as festividades tiveram pontos fortes, apesar da crise que nos atinge neste momento. O Viva à República será assim (talvez) um dito e uma imagem que emblematizam a hora, cem anos atrás.

Apesar da agitação havida e dos recontros de frentes de acção política. É inquietante e libertador ler a história da I República.


a hora dos revolucionários

À noite do dia 4 a moral encontrava-se baixa entre as tropas monárquicas estacionadas no Rossio, devido ao perigo constante de serem bombardeadas pelas forças navas e nem as baterias de Couceiro, aí colocadas estrategicamente, traziam conforto. No quartel general discutia-se a melhor posição para bombardear a Rotunda. às três da manhã, Paiva Couceiro partiu com a bateria móvel, escoltado por esquadrão da guarda municipal, e instalou-se no Jardim de Castro Guimarães, no Torel, auardando a madrugada. Quando as forças da Rotunda começaram a disparar sobe o Rossio, revelando a sua posição, Paiva Coiceiro abriu fogo provocando baixas e semeando a confusão entre os revoltosos. O bombardeamento prosseguiu com vantagem para os monárquicos, mas às oito da manhã Paiva Couceiro recebeu ordem para cessar fogo, pois ia haver um armistício de uma hora.
Entretanto, no Rossio, depois de Paiva Couceiro ter saído com a bateria, o moral das tropas monárquicas, julgando-se desamparadas, piorou ainda mais, devido às ameaças por parte das forças navais com bombardeio. Infantaria 5 e alguns elementos de Caçadores 5 garantiram que não se oporiam ao desembarque de marinheiros. Face a esta confraternização com o inimigo, os comandantes destas formações dirigiram-se então ao quartel-general onde foram surpreendidos pela notícia do armistício.
Quando as tropas retiraram do Rossio, e com a saída à rua por parte dos populares, a situação tornou-se muito connfusa, mas já favorável aos republicanos, dado o evidente apoio popular. Machado Santos confronta o general Gorjão Henriques com o facto consumado e convida-o a manter-se no comando da divisão mas esterecusa. Machado Santos entrega assim o comando ao general António Carvalhal que sabia ser republicano. Pouco depois, pelas 9 horas da manhã, era proclamada a República por José Relvas, na varanda do edifício da Câmara Municipal de Lisboa, após o que foi nomeado um Governo Provisório, presidido por membros do Partido Republicano Português, com o fim de governas a nação até que fosse aprovada uma nova Lei Fundamental. 1
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1. O triunfo da revolução, consultado em Wikipédia, a enciclopedia livre

Lê-se e não e acredita, parece quase uma opereta um uma performance amadorística, não contando com a instabilidade posterior, entre grandes sonhos para um país novo e a derrocada já anunciada a montante, no estertor da monarquia. E depois parece um guião para o 25 de Abril, esse dia morno em que os carros de combate de Salgueiro Maia «acantonaram» no Terreiro do Passo. Houve a Junta de Salvação Nacional e também uma Assembleia Constituinte para redigir outra Lei Fundamental, agora já em começo de roptura numa crize mal explicada e mal gerida, eventualmente o início de uma Superior Reforma à escala global, como tanto se apregoa. Mas de verdade ninguém sabe verdadeiramente em que consiste essa globalidade e se deve ou não ser combatida quanto antes. Lá porque as comunicações o permitem, não parece razoável deitar ao lixo todos os enxovais e apertarmos o botão de uma mútua mortandade.

uns esperando por outros, um passeio armado pela Rotunda

quinta-feira, setembro 30, 2010

QUE EUROPA É ESTA, ESMAGADORA E SONSA?


A balada dos cães passou na lama escura das cidades europeias. Viajou do grande Ocidente do capital todo-poderoso e varreu tudo até às zonas frias do Leste, mesmo quando Moscovo, há um mês apenas, ardia sob um sol de 38º. Estava tudo a aquecer, em Agosto, e a voracidade dos cães ficcionais já vinha de longe, após a pulverização de um dos maiores bancos do mundo, não por ter sido abandonado pelos milhões de clientes ou dólares mas por ter um só gestor ensandecido, jogando apenas para mergulhar em rios de dinheiro. Está preso, pediu perdão, Obama não lhe respondeu. O presidente americano, atónito mas firme, atravessou um país em risco de receber sobre as cidades, como o efeito em cadeia de todos os jogos, o verdadeiro mega-registo da nossa pobre D.Branca.
A Europa, com pompa e circunstância, carregada de homens de fatos cinzentos e jovens gestores a manipular tudo e todos, deu o sinal de alarme. E foi o que se viu. Ninguém mais sossegou, ministros, ministras, presidentes, ministros das finanças, ministros da economia, banqueiros e bancadas, bolsas e zeladores dos mundos virtuais. Em pouco tempo a Grécia estava a ser intervencionada, sem meios e cravada de dívidas. E nós, portugueses, devedores cegos, presos à banca, ao fisco, às agências de tudo o que possa parecer transacionável, mal podíamos acreditar num destino assim. Galhardamente, ainda nos deixámos levar a férias, do Brasil à Tailândia, e fomos sufocar no Algarve, numa promiscuidade de 80.000 pessoas para nesgas de areia pouco maior que um campo de futebol. Todas as praias da região ficaram assim, atulhadas, embora destituídas dos benefícios, com a paisagem das falésias atravancada por altos muros de hotéis e casario fora do valor PIN.
Sócrates, o Primeiro Ministro português, atravessava a mudança de clima e das falências com uma estranha convicção de que os seus projectos valiam bem não escutar muito os alarmes de tsumani à vista. Ele promovera o plano tecnológico e o país tinha agora importantes polos de produção informática e similar, exportando para 47 países, bem como o retorno de núcleos de investigadores, a par de centros ou criadortes independentes cujo grau de inovação era manifestamente considerável, além das descobertas meio solitárias e invenções à média de duas por dia. As corporações não suportaram as bicadas deste homem meio despachado, mal credenciado de canudos, e desataram a tratá-lo como nunca se vira: o homem era assim escarnecido no próprio país, nesta última República incandescente. Sócrates aguentou, mas não foi capaz de se descolar da sua pele mais ambígua e deve ter acreditado, como muita gente entre nós, que ali estava, afinal, o desvendamento da teoria da conspiração, Freeport, Face Oculta, o Joaquim da Sucata, Ferreira Leite, a direita toda, mesmo no PS, e a esquerda, numa arruaça em plena Assembleia da República como nunca se viu nem filmou.
Recentemente, o eleito líder do PSD, calibrado pela juventude social-democrata, sorriu para Sócrates (que certamente desconfiava de toda a gente) e ofereceu-lhe tapete negocial para a viabilização do PEC, tendo em conta que eram mais fortes as urgências do país do que a pequenez provinciana dos partidos. E o país premiou Passos Coelho (PSD) transferindo para ele as inclinações de voto. Cavaco, o Presidente, jubilou relativamente ao seu próprio futuro. Mas ainda havia as perguntas póstumas de dois procuradores, no encerramento do caso Freeport. E a crise aumentava, até a Espanha soçobrara. Devagar se vai ao longe, terá pensado o Ministro das Finanças, Teixeira dos Santos. A dívida é enorme, senhor ministro, dizia alguém dos bastidores. É preciso cortar, agora sobretudo na despesa. E o senhor quem é?, perguntava o Ministro. Antes de tudo, sou cidadão português, europeu convicto. E veio para falar com quem? Vim, na qualidade de presidente do PSD, encontrar-me com o Primeiro Ministro. Teixeira dos Santos ficou perplexo e disse: Pois entre, ele está aí, a tratar dos grandes centros escolares e das reformas na Saúde e na Educação. Passos Coelho espantou-se: Mas isso já não estava adiantado? Claro que sim, mas é preciso mais, cuidar da nossa formação e do povo em geral.
Quando Passos Coelho, após uma larga reunião, passarinhou para o átrio, viu os jornalistas e tomou bem depressa a posição de Estado. A malta dos jornais e tevês queria saber da conversa, naquele delicioso espírito bisbilhoteiro que faz com que uma notícia sem história, sem nada, se torne vendaval na primeira página, dita nos maiores caracteres possíveis. Por exemplo: «Foi negado ao Primeiro Ministro acesso ao multibanco». No artigo, sabe-se afinal que o Primeiro Ministro passara por uma caixa de multibanco onde um grupo de pessoas se queixava da demora quanto à abertura daquele equipamento.
Coelho disse: O Primeiro Ministro não aceita parar com os impostos e preferir o corte na despesa, como estava combinado. Nunca voltarei aqui sem testemunhas.
E cairam o Céu e a Trindade, centenas de radicais, pró e contra, atravancaram os ecrãs das televisões, barafustando em muitos comprimentos de onda, embora sem ganhos fora das teorias habituais, fazendo somente diagnósticos apócalípticos. Medina Carreira, figura ímpar, embora demasiado parecida com o Mr Magoo, fala de garotos, de incompetentes, de um país tão absurdo e demente que nem sequer se parece com Portugal. Passos Coelho, por seu turno, procurou precarver-se, preparando a eventual catástrofe do orçamento chumbar. Reuniu à sua volta, numa tarde lapidar, 20 grandes personalidades, economistas sobretudo, afectas ao PSD. Queria ouvir (calado) o que eles tinham para dizer sobre o desastre iminente. Ouviu, reguardou-se, e o ruído voltou, contra o parecer da OCDE, entre comparações suspeitas e desmuseradas.
Então o Presidente Cavaco convocou os partidos para lhe dizerem o que pensavam fazer na altura da discussão do orçamento, tendo em vista a baixa gradual do déficit. Nada aconteceu de relevante, embora Passos Coelho voltasse a dizer que não aprovaria um orçamento em que subissem os impostos.
E por fim, ontem, a bomba: Sócrates, Teixeira dos Santos e Silva Pereira apresentaram-se ao país para divulgar as grandes linhas de orientação de um duro plano de austeridade capaz de enquadrar o orçamento para 2011. Em primeira página, o «Diário de Notícias» apregoa: «Sócrates anuncia um ano terrível aos porugueses. E é verdade. Leiam-se os jornais. Só há que esperar pelas bombas do «outro» lado. Um alto dignitártio do PSD, reagindo de forma teatral à conferência de imprensa dada pelo Governo, disse, tremente: Sócrates veio declarar ao país a incompetência do seu governo.
Eu só digo o que vejo e sei. Sócrates anunciou o que toda a gente lhe pedia, e fê-lo acima de todas as minguadas expectativas: para salvaguardar os riscos da execução orçamental, o governo e as personalidades que deram a cara, enunciaram cortes em todo o funcionamento do estado, cortes na despesa social, cortes no Serviço Nacional de Saúde, cortes no PIDDAC, outros cortes que minimizam despesas desde o ensino às autarquias, regiões autónomas, serviços diversos. É feita diminuição da receita fiscal, sobe o IVA, e são afastados outros focos de despesa. Tudo vai dar, como preconizavam vários tutores e curadores, a um total de Quatro mil milhões de euros e mais uns trocos que davam para um golpe de resgate financeiro nas Ilhas Caimão.
Entretanto, os problemas que afectam a Grécia e sobretudo a Irlanda, além dos países a Leste que aderiram à Europa mas não se comprometeram na zona euro, levantam questões muito graves e crispações perigosas: porque os países mais fortes e mais poderosos não estão a partilhar quadros de solidariedade, antes parecem gerar caminhos cuja geografia revela pontos fracos, deslizes, barreiras, impiedosas assimetrias. A Europa devia conhecer melhor a sua história: no século passado aqui se desencadearam duas guerras mundiais. E já apareceram as pimeiras vozes, no quadro da actual situação, alertando para os enviesamentos de uma dinâmica contraproducente, envolvida no modo como o dinheiro é usado, e nos perigos de uma guerra generalizada, agora transversal a outros conflitos latentes, do Irão a todo o Mediterrâneo. A geografia política e económica do mundo está longe de ter sido fixada e estabilizada. As forças críticas emergentes surgem um pouco por muitas latitudes e longitudes.

terça-feira, setembro 07, 2010

TALVEZ A ARTE MINTA PARA DIZER A VERDADE

abertura do blog de António Lobo Antunes

A vida é feita de uma falsa continuidade e a arte procura alcançá-la com propriedade de sentido e valores expressivos de diferente projecção no espaço perceptivo de cada um de nós: porque somos dotados de um sistema visual de grande resolução objectiva, revestindo-se de notória propriedade na absorção do real, apesar de depender de um conjunto de regras redutoras da natureza integral dos objectos percepcionados. A resolução das imagens no cérebro permite-nos nomear conceptualmente as coisas e colar a elas um saber plural, capaz de descodificar uma aparência e oferecer à vigília consciente a forma tridimensional da coisa vista, guardando dela e do próprio espaço envolvente o significado inteiro, grande parte das informações aí achadas. Esta questão tem de ser ajuizada convenientemente nos actos de reresentação do visível, quer pelo desenho ou pela escrita alfabética, entre muitos outros géneros de instaurar discursos artísticos, como nas artes plásticas, no cinema e na fotografia, na poesia ou na literatura em geral. A arte contorna as evidências (porque elas encobrem de certa maneira o real) a fim de tornar visível cada parte registada pelo olhar e pelo fundo enganador da visão. Em certo sentido, já tem sido dito que a arte transforma as aparências (mentindo) para as dar a ver com mais verdade. Estas notas ocorrem-me a propósito de uma estranha controvérsia gerada a partir da reacção dos militares, sobretudo declarada pelo Presidente da Associação dos Ex-Combatentes. O alarido tomou conta de muita gente, uns que defendiam o escritor e outros que o julgavam pela negativa, considerando parte de uma peça inserida no 2º livro de crónicas de António Lobo Antunes. E há quem, nessa ira, se esqueça do atroador «Cu de Judas», uma das primeiras obras daquele escritor sobre a guerra de Angola, testemunho magoado e nada louvando, peça que muitos de nós leram com um nó na garganta. O problema, desta vez, é que a frase mais destacada do protesto, parece mesmo, antes de qualquer literatura declarada, um outro testemunho, laminar, decisivo, destituído de ficção ou simbologia -- a verdade apenas, por mais absurda que a pequena história se apresente. Ao contrário do que costuma acontecer nas crónicas de Lobo Antunes, cujos textos surgem quase sempre orvalhados de um segundo sentido, entre símbolos e metáforas finais, a crónica apontada contém um período tão limpo como a verdade da própria verdade. Escreveu, a certa altura, Lobo Antunes: «Eu estava numa zona onde havia muitos combates e para poder mudar para uma região mais calma tinha de acumular pontos. Uma arma apreendida ao inimigo valia pontos, um prisioneiro ou um inimigo morto outros tantos pontos. E para podermos mudar, fazíamos de tudo, matar crianças, mulheres, homens. Tudo contava e, como quando estavam mortos valiam mais pontos, então não fazíamos prisioneiros».

Trata-se, com efeito, de uma implícita afirmação de grande gravidade. Também estive em Angola, mais ou menos na mesma altura, em Zala e Nambuangongo, onde perdemos vidas, mas a guerra ainda não adquirira o grau de sofisticação para provocar tais «ajustes de contas». Vinte anos depois de ter regressado de África, escrevi um livro a que chamei, talvez impropriamente, «Angola 61, crónica de guerra». O livro só será crónica porque todos os factos e pessoas nele abordados correspondem à pequena e grande história do batalhão, embora transmitidos por uma forma literária a lembrar a expressão ficcional, incluindo um forte apelo ao cinema. Mas há nele denúncias aterradoras, como tenho lido noutros textos e, em particular, na obra de Lobo Antunes, a que toca militares e a que não toca. Mentiras dizendo verdades cortantes, da guerra à Inquisição e a muitos outros estados de várias idades históricas do nosso país. Um colega amigo, a propósito do assunto aqui abordado, chamou-me a atenção para o lado gélido, como que imparcial ou neutro, da redacção daquele parágrafo de Lobo Antunes: o desinteresse pela forma literária, assaz mal falada, e o batimento seco e sintético dos factos e dos métodos com que eram contabilizados. Para este meu amigo, trata-se de um forte indício de que o escritor testemunhou aquele procedimento, quase impensável, mesmo para quem esteve na guerra colonial, ou através da filmografia sobre o Vietnam. Mas nada disto é assim tão simples e o problema (visto que tantos outros foram deslidos) parece residir no facto aparentemente institucional em si, difícil de esconder dos não alinhados ou dos oficiais da companhia. Até porque, num outro ponto da crónica, Lobo Antunes declara que pertencia a um batalhão de 600 homens, dos quais morreram 150, percentagem altamente desajustada de todas as estatísticas conhecidas, entre as mais isentas. Aliás, o escritor acedeu a desfazer esse eqívoco em carta para o Presidente dos Ex-Combatentes, carta onde não explica a questão dos espólios e dos pontos; porque sempre disse que a escrita dele só pode ser lida como expressão simbólica, mesmo nos eventuais eventos que decorram de factos presenciados. Isto é verdade que nos acontece; e Lobo Antunes, apesar de tudo, não estava ali a escrever um relatório para enviar a um qualquer chefe do Estado-Maior. Feitas estas distinções e abertas estas disponibilidades de circulação pelo sentido da obra de Lobo Antunes, aquela e outras do mesmo índice de acutilância, atrevo-me, sem querer assumir-me como advogado de defesa de um escritor que muito admiro, a adiantar mais duas ou três questões de valor substantivo: a) Em Angola, anos 60, uma companhia era constituída por 3 grupos de combate, cerca de 160 homens, entre soldados, cabos, sargentos, alferes, um tenente e um capitão, comandante da unidade. O tenente em geral era o médico, e os alferes milicianos concretizavam a cadeira superior hierárquica, com vértice no capitão. Os sargentos comandavam secções de 9 homens, integrando o grupo de combate. O problema posto pelo texto de António Lobo Antunes, enfrenta os seguintes (possíveis) problemas: ou o sistema de pontuação por acções desenvolvidas em combate e similares situações era circunscrito a um grupo de pessoas, secreto, e nesse caso a transferência do que mais pontuasse seria negociada por subterfúgios, ou esta roleta implicava toda a companhia, facilitando a transferência do vencedor para uma «unidade pacífica», o que coloca dentro da sigilosidade da operação toda a gente, desde o capitão ao último dos soldados. Apesar de tudo o que me foi dado ver, negociatas, abastecimentos directos e sem a menor transparência, escolhas de materiais passando por percentagens, desgaste não explicado nos géneros entregues às companhias, promiscuidade entre militares e civis em preparações especiais de aquartelamentos, pressão disciplinar sobre aqueles que não acatavam trocas obscuras entre chefias consoante interesses pessoais e vantagens financeiras, violência aplicada a dois prisioneiros, a verdade é que nunca estive perante situações tão abjectas quanto as referidas por Lobo Antunes. Podemos duvidar delas na base de um raciocínio técnico como aquele que sintetizei atrás, mas não podemos condenar o seu relato, mesmo que em relação directa com a realidade passada. Porque o contexto, o género da crónica, absorvem o significado dos conteúdos para o domínio do símbólico, da analogia com outras possíveis crueldades, em metáfora capaz de desmontar o real e a sua verdade numa outra verdade. Em termos litrários, Lobo Antunes pode ter-se socorrido de um jogo promocional cruel para dizer outras verdades, assinalando a brutalidade de muitos meios bélicos, aceites como norma. O próprio treino militar, antes de qualquer prontidão, chega a ser cínico e bárbaro, e bem me lembro disso em Mafra. Já não falo das mortes de jovens em instrução militar ligada aos comandos nem da criação de sistemas de dependência psicológica.

Resta talvez anotar que a forma dos artistas se assumirem como testemunhas empenhadas perante desvios sociais, políticos, religiosos, militares, seja qual for o grau de possível sanção (ilegal) que as corporações accionem contra eles, tem sido entre nós muito pobre. Há mais casos na literatura do que nas artes plásticas, e há uma infinidade de documentos expressivos em cinema, com graus aterradores de verosimilhança perante casos históricos amplamente conhecidos. De resto, quem são os portugueses ainda vivos, participantes sem escolha numa guerra dita colonial com 14 anos de extensão, que não tenham percebido como esses milhões de factos e resíduos traumáticos foram omitidos até ao maior dos desrespeitos por um povo assim sacrificado, com muitos dos seus mortos enterrados no teatro de operações e que só agora, lentamente e sobretudo pelas famílias, começam a ser resgatados, em recato, sem pompa nem circunstância. Todos as pequenas intrigas futebolísticas com que as televisões nos intoxicam sem medida, entre outras coisas idênticas, deveriam desde há muito ter sido substituidas em parte por debates, revelações, a história da guerra travada teimosamente por Portugal em Angola, Moçambique e Guiné. Muitos ainda esperam por isso, mas só lhes cabe ouvir as migalhas de programas com filmes de arquivo e testemunhos de patentes superiores. A guerra não foi nada disso. E Lobo Antunes, que era tenente miliciano no teatro de operações e sabe que não é preciso mentir num universo com tantos exemplos reais para abordar, tem de facto razão quando lidera frases assim: eu poderia escrever que na minha companhia, formada por 150 homens, morreram 150; e no batalhão, de 600 homens, morreram também todos eles, isto numa forma de exprimir que ninguém se salva após tão terrível experiência. O escritor, na correspondência travada com o Etado-Maior, diz que quanto mais simbólica é a linguagem mais verdadeira se torna. E asseverou que o tema acarreta «reacções emocionais fortes», até porque «a guerra colonial foi profundamente injusta. Pode esquecer-se a guerra mas ela não nos esquece. Deu cabo da nossa juventude e há-de dar cabo da nossa velhice. A negação de nada serve e a guerra continua a ser uma experiência muito dolorosa para mim. Quando venho de um almoço com os meus camaradas, essa noite é muito difícil. Todos nós morremos um bocadinho na guerra».

foram consultados materiais publicados no blog de ALA e por José Roldão

segunda-feira, setembro 06, 2010

POR MAPUTO: REDESCOLONIZAÇÃO EM VIOLÊNCIA

registos da reportagens televisivas
Já ouvi da boca de vários personalidades conhecidas palavras resmungadas que a descolonização, pelo menos no que se refere a Portugal, não fora precipitada, fora, pelo contrário, indevida, no tempo e nos métodos. Tem-se falado muito, também, num dos autores mais favoráveis aos processos de descolonização, Franz Fanon, que alertou, apesar disso, para os enormes riscos que se corria ao lançar povos inteiros, de súbito e ainda largamente impreparados, para a contemporaneidade. O desajustamento seria, em alguns casos, de efeitos devastadores, entre o desenho das fronteiras e a divisão das etnias ou nações. E foi afinal isso que se fez, apesar de alguns territórios privilegiados por prolongamentos coloniais enviesados, como no caso da antiga Rodésia, hoje um país vandalizado, sem ordem nem produção ordenada, esmagado por uma das mais patéticas ditaduras do Continente. Angola, por sua vez, entregue, por acordo institucional, aos três «movimentos de libertação, em breve se lançou numa terrível guerra civil, muitas vezes mais grave do que a guerra colonial, após a qual cidades haviam desaparecido, populações tinha percorrido fracturas enormes de deslocalização e outras, enquanto Luanda inchava de gente, de perturbação e um vasto tipo de carências, enquanto um núcleo em volta do Presidente e de outras entidades militares ou políticas, enriquecidas desproporcionalmente já nessa época, se entricheiravam na maior grandeza, entre o luxo, os bens e a força sobre todos os que caminhavam esforçadamente, estropiados, num largo horizonte de perigos ocultos e miséria.

Há sempre semelhanças entre estes desastres: Moçambique dividiu-se, logo após o cessar fogo das tropas portuguesas e o seu abandono do território, em duas forças opostas, em litígio bélico de intensidade muito menor do que o de Angola, mas, apesar de tudo, largamente danoso para o país. A FRELIM, desde o início da guerra colonial, apostada nos ditames libertadores, teve à sua ilharga, ainda durante esse tempo, o movimento homónimo RENAM, débil, menos municiado e ideologicamente impreciso. Mas, quando vieram as eleições de tipo democrático, a FRELIM foi vencedora, tendo na Assembleia Nacional de confrontar-se comos deputados que a RENAM conseguiu eleger. Esse perfil das forças que iniciaram os caminhos da independência não era preocupante e a sucessão dos vários presidentes tem decorrido com consensos quase nada pertrubadores. O problema, dada a escassez de meios imediatos de riqueza, coisa já existente em Angola, passou a residir nas políticas de de contenção, realidade agravada pela explosão populacional em Maputo, em termos por vezes capazes de provocar repugnância, desde o lixo, às sujidades dos imóveis e dejectos em avenidas principais. Tudo isto foi sendo combatido, como quem rema contra a corrente, pois o tipo de cultura das populações do interior não era ajustável às regras da vida citadina nesta escala. A situação, há pouco tempo, começou a degradar-se. Até que, em revolta contra o aumento dos bens básicos de consumo, a população, recrutada por SM S, entrou em estado de revolta, bloqueou a cidade, o próprio achefe de aeroporto, acabando por cometer alguns desacatos sobre lojas e pessoas. O governo reagiu em termos de espera, socorrendo-se da PSP para situar algum recato. algumas dispersões. O Chefe de Estado falou em nome do apaziguamento, sublinhado o dinheiro que se perdia em cada dia de paralisação da cidade, o que ocorreu, de forma completa, durante pelo menos dois dias. Apesar dos destroços, mortos e feridos, este incidente esbateu-se depressa: seja como for, não deixa de ser um sério aviso para aqueles que vivem acima de maior parte das pessoas, em assimetrias monstruosas, fio em certa medida anunciador dos erros cometidos nos anos 70, por Portugal e pelas Colónias. Esvaziadas dos quadros técnicos e administrativas competentes, o esforço de equilíbrio e de ordem social gerou ou agravou diversos tipos de «epidemias» que este género de subdesenvolvimento costuma tornar crónico. É o salto na contemporaneidade, seguido de catástrofes indizíveis.


Tudo isto poderia ser diferente, pausado, seguro, equilibrado, partilhado, num Continente que, em vez de entrar em agonia, deveria ser tomado pela humanidade como fundo de garantias em diferentes plataformas de produção e comservação? Por mim, penso que sim, não por achar que a descolonização estava fora do projecto nacional. De resto, a ditadura teve todos os sinais para salvar a face e os povos. Um «génio» chamado Salazar castrou toda um país com as suas sobrevivências e referências através das colónias. O que penso é que a descolonização não devria ter sido feita sob uma espécie de efeito de derrota, sem nada se preservar, indústrias, fecundação da terra, organização social, disciplina. Os portugueses e moçambicanos brancos que tiveram de abandonar de súbito aquele país, como aconteceu ao mesmo tempo em Angola, foram apenas martirizados por slogans e dirigentes cobardes que não souberam negociar e agilizar as tropas numa ajuda pós-militar. Alguém me poderá garantir, com razões técnicas e humanas de valor indesmentível, porque carga de água um exército que combate em três ferentes sem destruir os territórios e as populações tem de se retirar à pressa, com a tralha mal atada à cintura e uma cerveja para refrescar o «regresso» a Metrópole? Tratou-se de um erro grotesco, o que aliás veio reflectir-se em Portugal, num PREC maníaco-depressivo, falsamente chamado de revolucionário, proletarizando o campesinato e procurando mesmo a tomada do poder por um golpezinho patético, o qual o país conseguiu travar em pião -- e sem sanear verdadeiramente os que haviam ensandecido pelos quartéis e pelas quentes veredas do Alentejo. Assim ficaram as coisas, pela teimosia inerente a Salazar, pela incapacidade assombrosa de Caetano, pelo varrimento de toda a ética militar dos chefes que tinham «trabalhado» nas ditas colónias durante 14 anos, conhecedores dos problemas e do apoio que podiam dar no próprio espaço da independência e durante os primeiros tempos da mesma.
Franz Fanon tinha razão. Mas, como muita gente naquele tempo, achou mais rico o espectáculo das bandeiras desfraldadas pelas anharas fora e guardou no bolso as consequências que ele mesmo anunciara. Os militares portugueses, que não queriam meter-se na política, apoiaram um dos maiores desastres políticos sofrido pelo país. Hoje queixam-se de relatos que espreitam a história, como no recente caso de Lobo Antunes, mas esquecem sempre de olhar-se ao espelho e de relembrar uma guerra sobre a qual também se teceram elogios e aceitações de brandura. Não direi tanto, sobretudo nos costumes, até porque uma década dá para ensaiar uma civilização e os seus poderes ou armadilhas encobertas.

um pouco de sangue, nada mais, os motins acabam depressa, mas o futuro ainda não chegou.

domingo, agosto 29, 2010

DO TERROR RELIGIOSO AO ABUSO DO DINHEIRO

liturgia católica fixa demasiado a circunstância do poder que salva

Diante das realidades que constituem a estrutura e a substância do nosso sistema civilizacional, entre crises e cristalizações, devemos estabelecer algumas questões sobre a razoabilidade do que nos é dado ver. É preciso que indaguemos a natureza dos vários desenvolvimentos, que fundamento têm e que futuro proporcionam. A análise crítica de Husserl sobre o estado das ciências e das culturas, tendo em conta o propósito filosófico relativo ao século XX, parece mostrarà que a ideia de crise não se circunscreve ao domínio do económico. O mundo em que vivemos é afinal um espaço extremamente dividido quanto vasta qualificação do trabalho e isso obriga-nos a indagar a natureza das directivas do fazer, dos factos produtivos, como é que se projectam, quais as suas referências humanas e vitais, quadro sobre o qual se espalha uma névoa baptizada com o nome de crise (crise financeira e económica) no qual muitos pensadores actuais, perplexos, encurralados, crentes ou ´cada vez mais envolvidos em diversos processos de dúvida. Porque foram impelidos a pensar se a crise pode ser avaliada e desmontada como um dado em si ou deve enquadrar-se em planos que superam a fixidez do binómio onse se juntam as razões financeiras e económias. A passagem do estilo românico ao gótico, ligada às edificações de carácter religioso, teve certamente uma base económica consoante a realidade financeira (executante) dos tempos. Contudo, a caracterização dos projectos, que implicava pesquisa e orçamentação, tinha por raiz mais funda intuitos ou satisfações de base cultural, a demarcação de um imaginário largamente religioso, vontade sócio-política de garantir o poder para a salvação. À superfície, o próprio consumo, materializado através dos sonhos e dos desejos viciosos ou culturalmente definidos, tende a ser distendido ou controlado por duvidosos métodos de natureza moral -- limite sempre a dissolver-se pelo aumento de necessidades inventadas e pela permissividade onde o poder se justifica, entre a tolerância calculista e a defesa totalitária dos sistemas mais conservadores ou orientados para a estabilidade das escilhas maniqueistas. Esta questão foi aborada pelo professor Weber no sentido de uma pesquisa a montante, onde começa e engrandece a riqueza, tendo ele preferido ligar a crise a causas ainda mais remotas, embora hoje dissipadas pelos métodos de análise, ou seja: o esforço de compreensão da crise, mesmo na sua perspectiva actual, deve integrar outros afctores além dos habituais -- factores psicológicos, culturais e teológicas. Em entrevista ao expresso, Weber evocou então um esquema que relaciona a teologia e a economia na «questão do dinheiro». Disse ainda: «Um dos motibos do fascínio pelo dinheiro é a especulação financeira, o facto de usar o dinheiro para produzir mais dinheiro. Já citei uma frase muito conhecida de Benjamim Franklin, que Max Weber comentou no seu livro sobre a relação entre o calvinismo e o desenvolvimento do capitalismo. Aí já temos uma relação entre teologia, religião e economia. Retomei essas teses de Weber (anotou Samuel Weber para tentar saber se o fascínio pelo dinheiro estaria ligado à tradição teológica, sobretudo a cristã) que tanta pensar ao mesmo tempo um Deus único e criador imortal e as suas criaturas humanas, imortais na origem mas que se tornaram mortais devido ao pecado e à culpa». 1


o banqueiro multiplicador .

Esta perspectiva da origem do capitalismo liga-se ao problema da ética, que tem persistido. Em boa verdade, a única regra para produzir mais riqueza e o máximo lucro no manor limite de tempo, é uma das lógicas que tem levado ao descontrolo do sistema, perto do abismo terminal, donde não haverá verdadeiro retorno. Foi esta, de resto, a lógica que comprometeu a estratégia da Emrom, nos Estados Unidos, pois aí, contra toda a ética, «implantara-se um sistema sem orientação e que funcionava unicamente para produzir mais lucro e riqueza a favor de um número reduzido de pessoas».

o banqueiro duplamente multiplicador

Destaque incontornável: a acumulação de riquezas sem limites escita uma resposta defensiva contra o medo de que o tempo caminhe para a destruição do indivíduo. Basta observar as grandes catedrais (o Vaticano é exemplar) e o poder de certas Igrejas para se perceber quanto o fascínio por tal exibicionismo tentava impor aos crentes na doutrina por elas representada a ideia da salvação material, a única capaz de assegurar a pertectuação à posteriori do indivíduo. Algumas das mais abjectas alucinações do capitalismo selvagem assentaram no cavo arbítrio antropofágico que o dinheiro comporta, deificando o seu detentor. Bernard Madoff, embora pudesse ter atingido, na legalidade, a maior fortuna de todos os tempos, prosseguiu pela ilegalidade, dei a si mesmo o privilégio de se considerar Deus.


o esmagamento pelo jogo do dinheiro 2 rocha de sousa

entre dois blocos desmuserados do império financeiro 3 rocha de sousa

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1. baseado em «Samuel Weber», entrevistado por António G uerreiro

2. plano de um filme de Anthony Hopkins
3. Plano de um filme de Anthony