terça-feira, maio 29, 2012

SEPULTURAS COLECTIVAS NA SÍRIA, EM HOULA


Tem sido impressionante acompanhar o drama da Síria, a luta dos rebeldes contra  um regime intolerável e a devastação  a que este submete cidades inteiras, civis,  homens, mulheres e crianças, destruindo cegamente um património urbano imenso com artilharia pesada. O último massacre, em Houla, foi «repugnante», como classifica o jornal «Público», de hoje. A morte de cem pessoas e  trezentos feridos, o desabamento de imensas infraestruturas, tudo solicita uma intervenção da comunidade internacional e, desta vez, o Conselho de Segurança da ONU condenou  o  alastramento destas operações. Irão condena as forças da imposição e diz que vai enviar  tropas para  evitar que os rebeldes prossigam acções deste tipo. Não há esse poder militar do lado dos rebeldes nem todos os testemunhos e imagens de cidades destruídas, de paredes leprosas podem  esconder-se  debaixo do tapete. Foi preciso que imagens de crianças mortas no massacre de Houla corressem o mundo para que Moscovo e Pequim dessem um passo de condenação para esta repressão sobre a oposição ao regime de Bashar al-Assad. Os mortos são entalados entre blocos de cimento, em longas filas, embrulhados na medida do possível 
Aqui vemos uma terrível narrativa da suprema ausência.

terça-feira, maio 15, 2012

JÁ VIMOS ESTAS CARAS EM QUALQUER PARTE


A televisão é um dos meios de comunicação social grandemente favorecido pela tecnologia e com os recursos mais diversos, nomeadamente os que podem servir a cultura, a educação, a informação, o avanço crítico sobre os homens e o mundo. 
 
Infelizmente, massificada para além dos limites, só sobrevive com grandes fatias de tempo ocupado por publicidade tóxica e programas ditos recreativos, numa alucinada concorrência entre canais e com o maior despudor e tudo fazer para alienar e «comprar» o espectador.

A TVI é a pecadora maior mas com alguns casos de boa escolha, casos de acaso, sobretudo, e em geral para o fundo da noite, quando o país, mesmo desocupado, dorme pelos mais diversos motivos. 


Este canal implementou recentemente um programa musical com alguma ambição, no qual são convidados cantores e actores-cantores a imitarem significativos vultos do canto não clássico. Premindo uma maquineta de feira, correm retratos de «celebridades» e sai sem bónus o que quer que seja, mulher ou homem para imitação (por vezes) de homens por mulheres ou vice-versa. O resultado tem sido por vezes fabuloso. Mas os apresentadores, Goucha e Cristina Reis, resvalando para o mais popularucho que há em televisão, desarrumam uma coisa que pode ser séria e recreativa, em vez de atravessada pelo desrespeito do júri quando fala, acentuando a chacota e números improvisados do senhor Goucha, impertinentes e fora da linha de nível a que deveria ter-se regido o casting. Uma falsa concepção da boa disposição implica muito estudo e sabedoria nas nuances. Cristina deveria fazer uma boa «fisioterapia» da voz e o senhor Goucha colocar uma banda gástrica no Ego. Boa nota para as prestações de avaliação de António Sala e Jardim. 
Os outros membros do juri podem brincar melhor nas telenovelas, onde toda a concepção é cada vez pior, embora tenhamos actores cada vez melhores. E cuidado: a quantidade não faz a qualidade. 
Há muita gente com saudades de ti, Mário Castrim.

quinta-feira, maio 10, 2012

DOS NOSSOS ANTEPASSADOS: ARTE MODERNA COMO?


As pinturas da gruta Chauvet são provavelmente as mais antigas do mundo. No «Público» do dia 8 de Maio deste ano era mostrada ao público esta arte parietal que se estima ter sido executada há cerca de 30.000 anos. A recente datação, a mais exacta que existe, confirma que o bestiário que cobre as paredes desta gruta do Sul de França consolida um tempo de formação mais recente do que se supunha, o que obriga a rever muitas teses sobre a natureza das obras e em que termos funcionavam para os homens daquele idade, desenhos e pinturas numa agitação vitalista realizadas, presumivelmente, em níveis de claridade muito baixos, mesmo que reforçados com fogo de tochas criteriosamente orientado. Ao primeiro impacto, Éliette Brunel, sob o clarão da lâmpada frontal, exclamou apenas: «Eles vieram cá!»
Eis uma bela frase. Uma frase que mostra o espanto de uma cientista do século XX perante a absurda qualidade plástica, exímia representação de animais do meio, feita, segundo se conseguira determinar, até então, como tendo uma idade de mais de 40.000 anos. E a quem se referia Éliette, quem estivera ali, quem era essa gente que precedeu o homem histórico tal como o conhecemos? Seriam seres semelhantes a  nós, do espaço exógeno, que ali apontara exemplos do seu estudo no local, onde nunca mais voltaram? A mitologia dos OVNIS acercou-se bem cedo destes testemunhos de uma sábia expressão gráfica e pictórica, aprontada onde ficasse preservada e exprimisse a capacidade do encontro com os meios locais e o seu  valor sintético dizendo a beleza de animais já tão complexos, ao mesmo tempo exaltando a vida daquela terra e ornamentando os tectos das noites quentes ou frias que o fim do nomadismo viera alinhar, convocando mais meios de sobrevivência.
São razoavelmente conhecidas as matérias que o homem deste tempo usava, partindo da própria terra, a fim de assegurar a paleta básica, os materiais de expressão. As especulações quanto a datas, para um pensamento sobre causas e fins, pouco importa. Claro que os artesãos deste mundo remoto tinham uma praxis adequada ao que realizavam e certamente não desconheciam a fauna mais persistente de cada lugar. Mas para que pintavam e desenhavam, alheios e gatos e cães, a sítios de faustosa flora? Penso que isso se devia ao facto de o seu trabalho não ser desinteressado. E era interessado no conhecimento de certos animais, quer a sua anatomia e mobilidade, quer o grau de resistência a um lançamento de caça. Tais pinturas resultariam assim numa educação visual ordenada no sentido de se obter um justo e rápido olhar sobre tudo o que importava ver no intuito da caça. Parece muito pragmático para seres tão acossados por perigos de origem desconhecida. A metodologia e o rigor das representações podem apontar esse modo de operar quanto ao caminho visado. Mas não seria o rigor a face de uma mimética capaz de tornar límpido o objecto do desejo? Percepcionas e conheces bem, melhor acertas com os instrumentos de morte. Os desenhos parietais, sem composição de campo, seriam alvos de uma liturgia repetida muitas vezes e propiciadora do êxito na caça e no índice de sobrevivência.



Intriga, em todo o caso a raridade e a situação destes procedimentos. Não há bizontes pintados por tudo quanto é tecto de rocha ou parede alisada. Esses habitáculos, se é que se tratavam de habitáculos, não tiveram uma disseminação estrondosa: talvez porque eram trabalhos de manejo difícil, talvez porque poderiam servir sobretudo para a comunidade aspirar colectivamente à bondade dos deuses. Então, em lugar de habitação, as cavernas seriam espaços de refúgio e convocação dos espíritos. O homem tolhia-se perante a sua figura, porque aspirava a eternizar em qualidade aquele material tão constante à sua volta. Houve sítios, em todo o caso, onde figuras humanoides, de cabeças orladas, foram aparecendo no que talvez fosse a invenção a montante da pastorícia. A estranheza das cabeças e das suas ornamentações iguais levou os crentes da mitologia OVNI a verem ali figuras de outros lados, estrangeiros, que procuravam estabilizar os meios da vida na Terra. É muito e é pouco para ser verdade. Olhamos aquelas figuras e apetece-nos rodar a cabeça, ver em movimento para melhor sentir o movimento dos seres representados. Não há praticamente grutas destas onde, a certa altura e num espaço maior, não nos confrontemos com figura acima do nosso olhar. Também isto nos faz espécie, porque imagina-se mal como fariam os artesãos para subir ao seu campo de trabalho e executá-lo como que em primavera, sem os tornar façanhudos e distorcidos.
No primeiro dia em que entrei na capela Sixtina, no Vaticano, havia muita gente, um marulhar de vozes baças. Vendo mal e sem grande ânimo as pinturas das paredes, verticais, tive a sensação de que não havia tecto e fui olhando para cima, afinal como a maior parte das pessoas que me envolviam e até rezavam. Lá estava, bem no alto e com grande sabedoria técnica, uma série de pinturas que interessavam ao lugar e sugeriam a ascensão salvadora. Assombrado, só me vinham à memória o grande enlace das pinturas nas paredes e tectos das grutas que conhecera.

terça-feira, maio 08, 2012

MIA COUTO: ENTRE LEÕES, HOMENS E MITOS

Mia Couto
Dir-se-á que este é o verdadeiro Mia Couto, inspirando-se na sua amada e bem conhecida África, zelando pelas inspirações literárias e pelo estado do território, como preservá-lo, como o ocupar com gente produzindo sem vandalizar.
A verdade é que, como dizia o outro, Moçambique é o país deste escritor e Portugal é o seu refúgio. Talvez mais do que refúgio, porque também se transformou em loja, livraria, parque de relações sociais. E não estou a dizer isto por ironia: raramente um escritor da língua portuguesa, vivendo fora do espaço original da Língua, terá tido tanto ruído à sua volta, honrarias, sessões solenes, tempos de antena (televisiva) em horário nobre, entrevistas, cartazes, montes de livros em todas as livrarias importantes do país. Em princípio, isso não é mau. O pior é a sua singularidade, a sua raridade, mais do que um Prémio Nobel que nos caísse em sorte.
Sou leitor da obra de Mia Couto (não lhe outorgava o Prémio Nobel, embora ele viva num sítio que estará à bica do acontecimento. Prémio Nobel emergindo entre leões, homens e mitos. E Mia Couto é bem comportado, inova até onde pode e deve, não esgaravata revoluções. E, pelo meio de tudo isso, um escritor que humaniza a escrita e a leva muitas vezes, foneticamente, à boca. O actual livro («A confissão da Leoa») é, creio, o segundo romance de Mia Couto. É pena que ele não nos fale mais profundamente das suas experiências pessoais, o tempo, a natureza dele e do povo em volta, os conflitos e a empobrecida vida do campesinato. Mas desta vez,  origem de um certo comportamento dos leões e o seu avanço no território que lhes é próprio, gera uma parábola que se abre aos mitos, aos sonhos, aos fantasmas, depois dos leões, descendo sobre a miniaturização dos homens, ferindo a sua fragilidade, gente a sangrar de facto, caçadas improváveis, palavras novas menos ou mais acertadas. A sociedade dos homens não sai muito bem tratada desta simbologia e da força ancestral desta raça de seres que pode agora caçar os homens em vez de ser caçada por eles. Porque os homens, imitando manias coloniais, correm para as cidades e abandonam o território à Natureza. As sociedades em Angola ou Moçambique não têm que ser amadas e desculpadas com carradas de História não sei se errada, se própria do tempo até onde a podemos narrar.
Cito José Silva Maria: «Tendo em conta os contornos da narrativa, atravessada por cosmogonias, lendas, crenças e sonhos premonitórios, havia o risco de Mia Couto cair em estereótipos ou, pior ainda, nas armadilhas do realismo mágico. Felizmente, tal não acontece. A sua prosa mimetiza a paisagem e flui como o rio que atravessa a aldeia. Não há demasiados afloramentos líricos, nem o exagero de neologismos que saturava muitas das suas obras anteriores.»
Isto quer dizer que vai no bom caminho, que a caça não acontece «nas costas da razão». Afastado o receio das «coisas invisíveis» e consciente da trágica e «infindável guerra», fica  o aviso contra o hábito dos homens sempre abusarem do seu poder e das mulheres educadas para a renúncia.

quarta-feira, maio 02, 2012

FERNANDO LOPES: TALVEZ UMA ABELHA NA CHUVA

MORREU  FERNANDO LOPES
 
câmara lenta

Tive o privilégio de assistir à primeira projecção, com Fernando Lopes e Vitor Silva  Tavares, do filme «Uma Abelha na Chuva», que será sempre, para mim, a melhor peça da obra do realizador de «Belarmino» e de «O Delfim», entre outros. Não é possível esquecer. Não é possível deixar de lamentar, hoje, esta morte que agrava os silêncios que se abatem sobre a nossa cultura, no cinema, na literatura, nas artes plásticas, entre partilhas e desenvolvimentos legados pelo século XX. Fernando Lopes, eu o convoco, homem sábio e sensível, referência inalienável do Cinema Novo português. Todos os lembram pelo culto da amizade, profundo saber e felicidade na vida. Segundo as palavras do seu filho mais velho, Fernando Lopes, de 76 anos, vítima de cancro, esteve sempre lúcido; depois «apagou-se devagarinho; foi uma coisa muito suave.»

 EM CÂMARA LENTA

É bom quando se pode deixar aos outros uma visão do mundo e das pessoas, seja qual for a obra «acabada». Também, desse tempo, muitos lembrarão «Verdes Anos», primeira obra de Paulo Rocha, que será depois superado em «Abelha na Chuva», no qual Fernando Lopes nos mostra como desde cedo sabia reflectir sobre a vida, como nessa aventura da personagem feminina perante a dureza do marido e a chuva envolvente, tudo nos mostra a solidão, solidão mais profunda do que aquela que «Verdes Anos» inaugurara em tempo domingueiro nos subúrbios de Lisboa. O último filme de F. Lopes («Em Câmara Lenta ») é  mais do que uma viagem ao fundo do mar, é sobretudo, pelas memórias da personagem, uma reflexão sobre a vida e a condição humana, gente que aparece e desaparece, que nos guia para a luz que deverá receber-nos.


BELARMINO

Fernando Lopes entra pela vida fora, trabalha esse boxer da margem, Belarmino, faz um «cinema da verdade», leva-nos pela mão e pelas entrevistas ao pugilista na deriva nocturna de Lisboa, uma espera, um último combate, o tempo a passar. A maturidade e a criatividade de Lopes ganham aqui uma espécie de rampa de lançamento para a (talvez) primeira obra do Cinema Novo Português, «Uma Abelha na Chuva». Peça fundamental da nossa cinematografia e cuja rodagem decorreu com meios escassos mas sob a batuta encantatória do realizador, alguém que dá ao cinema outro campo de invenção e a voz peculiar do romance de Carlos de Oliveira. Este filme tem uma sensibilidade mais rara, é em certa medida claustrofóbico, abstracto, interiorizado. «Abriu a porta à vertente obsessiva e quase experimentalista de Fernando Lopes,» algo quase mágico e surpreendente nas hipóteses formais, que outros filmes posteriores talvez não contenham na mesma dose de perturbação.


Uma Abelha na Chuva
Excepcionais interpretações de Laura Soveral, João Guedes, Zita Duarte e Ruy Furtado

Aqui deixamos uma breve homenagem a um grande artista português a quem o país tem o dever de realizar uma apresentação de toda a sua obra, menos complexo e dispendioso, creio, do que as pomposas exposições rectrospectivas de artistas plásticos portugueses e estrangeiros. O cinema é uma grande arte da comunicação, sintetizando todas as outras artes  da imagem, do espaço e do tempo.

             UM DOS PLANOS INICIAIS DE «UMA ABELHA NA CHUVA»